- Guilherme Purvin -
Todos hão de se lembrar que, há pouco mais de cinco anos, mais especificamente no mês de abril de 2018, o ex-presidente Jair Bolsonaro havia sido convidado a ministrar palestra no clube Hebraica, ocasião em que, criticando quilombolas, afirmou que eles não serviriam “nem para reproduzir”. Convite e discurso provocaram acirrada polêmica na época. À maioria parecia inconcebível que um clube fechado da comunidade que foi perseguida pela extrema-direita na mais horrenda chacina de natureza racista no Século XX abrisse suas portas para um candidato de extrema-direita proferir um discurso de conteúdo racista. Afinal, se russos, estadunidenses, ingleses, franceses e brasileiros lutaram juntos, seria ético, decorridos menos de 80 anos do fim da guerra, destruir todo um discurso histórico a respeito da verdade compartilhada pelos vencedores acerca da opressão nazista?
A conhecida frase de George Orwell “A história é escrita pelos vencedores” encontra-se na edição de 4 de fevereiro de 1944 do Tribune, na sua coluna “As I Please”. Depois de narrar dúvidas suscitadas sobre a veracidade de alguns fatos bastante conhecidos, como a primazia da descoberta da América por Colombo e a existência de seis esposas de Henrique VIII, e de denunciar a narrativa de Francisco Franco sobre a Guerra Civil Espanhola por Francisco Franco, Orwell afirma:
“Durante parte de 1941 e 1942, quando a Luftwaffe estava ocupada na Rússia, a rádio alemã regalou o público de sua casa com histórias de ataques aéreos devastadores em Londres. Agora, estamos cientes de que esses ataques não aconteceram. Mas qual seria a utilidade de nosso conhecimento se os alemães conquistassem a Grã-Bretanha? Para os propósitos de um futuro historiador, esses ataques aconteceram ou não aconteceram? A resposta é: se Hitler sobreviver, eles aconteceram e, se ele cair, eles não aconteceram”.
Hitler foi derrotado e, assim, preservou-se uma narrativa alertando para os horrores do Nazismo. Bastou, porém, a ascensão de movimentos neonazistas, que se fortalecem com o aniquilamento de seus opositores, para que Mein Kampf passasse a ser vendido nas ruas ao lado da Revista Veja [1].
Vivendo à época da 2ª Guerra Mundial, eu não hesitaria em aplaudir os discursos de George Orwell ou de Thomas Mann e em dizer que as notícias radiofônicas alemãs mencionadas por Orwell constituíam flagrantes falsidades. No entanto, ao ler os livros que relatam efetivos ataques da Luftwaffe ao Reino Unido entre 7 de setembro de 1940 e 10 de maio de 1941, pergunto-me se Orwell estava se referindo a outro episódio histórico e se estou embaralhando fatos históricos.
Leon Trotsky, numa carta aberta à comissão editorial do jornal “La Verité”, afirmava:
“Seu jornal tem o nome Verité (Verdade). Esta palavra, como todas as outras, foi amplamente abusada. No entanto, é um nome bom e honrado. A verdade é sempre revolucionária. Desvendar a verdade de sua posição antes que o oprimido os conduza à estrada da revolução” [2].
A verdade de Trotsky em 1929 era completamente diferente da verdade de Stalin. Desde 1925, o Partido Comunista defendia o “socialismo em um só país”, enquanto Trotsky pretendia uma revolução permanente rumo ao socialismo planetário. Verdade, por isso, era desmascarar Stalin, Kamenev e Zinoviev. Seu assassinato por Ramón Mercader consumou a celebração da verdade oficial stalinista: a execução de um contrarrevolucionário — narrativa que ainda perdura em correntes de esquerda.
No Evangelho de João Batista (18:37-40), Pilatos pergunta a Jesus se ele é rei e este responde afirmativamente:
“Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz”.
Então indaga Pilatos:
“Que é a verdade?”
Para a maioria, a pergunta de Pilatos seria evidentemente sarcástica. No entanto, se era essa sua intenção, seria necessário explicar por que motivo o Procurador de Roma na Judeia saiu imediatamente após na defesa jurídica de Jesus, argumentando com o povo judeu que não via nele nenhum crime. E, como era costume que pela Páscoa fosse solto um preso, perguntou se não preferiam a soltura de Cristo. Pilatos fez prevalecer a votação do povo em favor de Barrabás, mas antes disso relativizou a palavra “verdade” — não aquela dita por Jesus, mas a dada multidão que clamou pela morte de um inocente. Pilatos relativizou o próprio Direito Romano, ao advogar em defesa do condenado e destacar que sua inocência era patente.
Hegel afirma que a realidade histórica presente pode ser inteiramente compreendida pela reconstituição dos fatos históricos precedentes. A preservação dos arquivos das narrativas não oficiais dos “derrotados políticos” permite reconstituir e compreender episódios obscuros, como o da ascensão da extrema-direita com o apoio de alguns representantes da comunidade judaica.
Longe de querer relativizar a gravidade da Bücherverbrennung de 1933 na Alemanha ou o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro em setembro de 2018, entendo que a perda de informações e de registro de discursos e narrativas não oficiais não precisa decorrer necessariamente da destruição de suportes materiais, bastando a manipulação da informação pelos aparelhos ideológicos, que filtram e selecionam permanentemente os discursos que deverão formar a chamada opinião pública.
Era para não sermos vítimas das técnicas de Propaganda e Marketing em favor dos poderosos que os poetas do final do século XVIII e do início do XIX utilizavam sua lírica como instrumento de luta e resistência dos derrotados pela força bruta. No poema “Os deuses da Grécia” (“Die Götter Griechenlands”, tradução de Maria do Sameiro Barroso), Friedrich Schiller discorre sobre a imortalidade do discurso poético em oposição à transitoriedade da vida:
Sim, eles regressaram à sua casa e levaram consigo
Tudo o que era grande e belo consigo,
Todas as cores e todos os matizes da vida.
Ficou-nos a palavra empobrecida.
Retirados das vagas do tempo, pairam,
A salvo, nos cumes do Pindo.
O que permanece imortal, no canto,
Tem que perecer, na vida.[3]
A poesia pereniza, ainda que por uma “palavra empobrecida”, a glória de deuses que não fazem mais nenhum sentido na Europa do final do Século XVIII, mas essa palavra continua sendo a narrativa oficial, dos poderosos, dos que, num tempo distante, foram vitoriosos.
O genial Heinrich Heine, num poema também intitulado “Os deuses da Grécia”, retomou o tema oferecido por Schiller, mas assume uma postura em defesa do discurso dos derrotados pela História, enfrentando uma questão política que de certa forma havia sido deixada de lado pelo outro poeta.
Depois de declarar que nunca amou os deuses gregos, por considerá-los repugnantes, assim como os romanos, Heine admite sentir uma espantosa comiseração ao vê-los abandonados no alto do firmamento, nada mais do que sombras sem vida vagueando na forma de nuvens num céu noturno. A misericórdia do poeta decorre da constatação de que os deuses atuais, aqueles que os derrotaram, são “a malícia na pele de carneiro da humildade”. É por conhecer a índole dos deuses vitoriosos da contemporaneidade que ele declara sua disposição para estraçalhar os novos templos e lutar pelos deuses antigos:
Pois, enfim, ó deuses antigos
Se antigamente participastes dos combates dos homens,
Sempre tomando o partido dos vencedores,
O homem é mais magnânimo que vós
E no combate dos deuses tomo
O partido dos deuses vencidos. [4]
A diferença de perspectiva entre as duas poesias sobre os deuses da Grécia está no fato de que, ao contrário das editoras que hoje republicam Mein Kampf e dos clubes judeus que acolhem ultradireitistas, Heine assume inequívoca defesa dos mais fracos.
Na Idade Média, por maior que fosse o número de copistas, todo esse trabalho seria inútil diante de uma decisão da Santa Inquisição pela indexação de um livro e sua queima em fogueira, muitas vezes juntamente com o respectivo autor. Esta prática, aliás, persistia em maio de 1933, nas praças públicas alemãs. Não há neutralidade nos discursos.
Por outro lado, não enaltecessem os poderosos, os épicos Odisseia, Ilíada e Eneida talvez não passassem de fragmentos, a exemplo do que restou da lírica de Safo. Ou nem isso: teriam tido o mesmo destino da Comédia de Aristóteles, o completo desaparecimento. Talvez seja por isso que a tradição épica chegou ao nosso tempo: Ulisses, Aquiles e Enéias personificavam o poder político.
Enquanto Benjamin Netanyahu, primeiro ministro de Israel, esteve no Brasil, aguardando ansiosamente a posse de Jair Bolsonaro, eu lia o grande Heinrich Heine, que no Século XIX alertava:
“Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens”.
[2] https://www.marxists.org/archive/trotsky/1929/08/verite.htm - Acesso em 30.12.2018.
[3] http://triplov.com/poesia/schiller/deuses_da_grecia.htm - Acesso em 15.04.2018. O poema "Os deuses da Grécia" também foi traduzido por Machado de Assis: “Foram-se os numes, foram-se; levaram / Consigo o belo, e o grande, e as vivas cores, / Tudo que outrora a vida alimentava, / Tudo que é hoje extinto. / Ao dilúvio dos tempos escapando, / Nos recessos do Pindo se entranharam: / O que sofreu na vida eterna morte, / Imortalize a musa!” ("Poesias coligidas". In:_____. Obra completa, vol.III. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973).
[4] HEINE, Heinrich. Os deuses da Grécia. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: ___, Os deuses no exílio. São Paulo : Iluminuras, 2011, pág. 17.
Guilherme Purvin é escritor. Formado em Direito e em Letras pela USP, doutor em Direito Ambiental. Autor dos livros de contos "Virando o Ipiranga" (semifinalista do Prêmio Oceanos de 2022), "Sambas & Polonaises" e "Laboratório de Manipulação". Toda a sua produção literária pode ser adquirida pelo site da Editora Terra Redonda.