-GUILHERME PURVIN- A devastação de ecossistemas como o da Mata Atlântica, do Cerrado e do Pantanal Matogrossense está relacionada a mazelas recorrentes na história do Brasil, tais como o descontrole fundiário e a degradação ecológica. A estrutura fundiária do país foi formada a partir do apossamento ou esbulho da terra, da escravização e do extermínio das populações indígenas. Nesse contexto, a literatura brasileira retrata as diferentes visões acerca da relação homem / natureza no Século XIX, contribuindo para o esclarecimento do processo de desmatamento do território brasileiro, a partir de expressões como “sertão” ou “ermo”. O conceito de “sertão” não é unívoco. Para alguns, é o espaço formado por dois ecossistemas distintos das florestas e localizados a oeste da Mata Atlântica, a saber, o cerrado e a caatinga. Outros o identificam com os pontos mais distantes da Floresta Amazônica. Genericamente, sertões ou ermo seriam a área despovoada e distante da costa atlântica rumo ao interior do subcontinente brasileiro.
Bernardo Guimarães
É no ermo, na solidão “majestosa e solene como um templo”, além dos montes, na extrema do horizonte, que Bernardo Guimarães (1825-1884) encontra a natureza intocada. E, por não ter sido conspurcada pela mão humana, ela é “bela e virgem”, “qual moça indiana, que as ingênuas graças em formosa nudez sem arte ostenta”. Ambientando o romance O ermitão do Muquém em tal cenário, Guimarães traça a trajetória de Gonçalo rumo ao “sertão profundo”, desde a cidade de Goiás, passando por uma tribo Xavante, prosseguindo rumo ao isolamento, embrenhando-se “por sertões desconhecidos passando voluntariamente uma vida de ásperas mortificações e penitências”, vagueando “por um largo tempo através dos ermos com um bordão à mão e um saco às costas, vivendo de esmolas ou de frutos e legumes silvestres”, até por fim presenciar, em total solidão, o milagre da Virgem Mãe de Deus, erguendo no local da aparição a capela que viria a se tornar a Igreja de Nossa Senhora da Abadia. No ermo, na solidão absoluta de uma floresta intocada, Gonçalo / Itagiba, depois de haver matado seu melhor amigo e sua amada, encontrará a redenção.
Bernardo Guimarães, além de explorar o tema das queimadas em algumas de suas obras, também não se esquece do poder do ferro nas mãos do homem, mostrando a morte de árvores seculares pelos golpes do machado no processo de exploração minerária do solo brasileiro – em particular no seu romance O Garimpeiro. É, contudo, na terceira parte do poema O Ermo que encontramos a mais expressiva referência à violência do homem sobre a natureza, denunciando “o ferro que dá morte às selvas”, brandido pelo escravo, derrubando árvores centenárias. E, após a derrubada das árvores, cujos troncos agora jazem “como ossadas de gigantes”, vem então a queimada, com as suas “ígneas asas e negros turbilhões de fumo ardente das abrasadas fauces vomitando em hórrido negrume”. A despeito da pujante denúncia de destruição da natureza, ao final do poema Guimarães curva-se ao desenvolvimentismo de forma decepcionante para quem acreditava ver ali o esboço de uma literatura ecológica.
Visconde de Taunay Em Visconde de Taunay (1843-1899) os sertões também são identificados como a região mais afastada da costa marítima. As primeiras páginas do romance Inocência são célebres por sua riqueza, precisão descritiva e musicalidade. O cenário é quase o mesmo daquele que Guimarães descreve no poema O Ermo ou na última parte de O ermitão do Muquém. É o “sertão bruto”, a terra distante e desabitada. Mas em Taunay, esse sertão apresenta coordenadas geográficas precisas. É o trecho cortado por uma estrada que vai de Vila de Sant’Ana do Paranaíba ao sítio abandonado de Camapuã e mais além, rumo à região de Miranda, Pequiri, Vacaria e Nioac, no baixo Paraguai, Mato Grosso. Essa região está presente ao longo da obra de Taunay, sendo descrita em A Retirada de Laguna, no conto Ierecê a Guaná e em suas Memórias.
Em Inocência, depois de descrever a diversidade da vegetação dos cerrados, capões e charnecas, Taunay descreve a prática (ou fenômeno) do processo inicial de queimadas (“sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras”) até estas se transformarem em incontrolável incêndio (“de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam”).
Taunay, porém, não se deixa levar pelo pessimismo e, logo à frente, reafirma o poder regenerador da natureza, numa época em que ainda não se cogitava da irreversibilidade do processo de degradação do meio ambiente que caracteriza a nossa época de emergência climática: bastam as chuvas para que a vegetação volte a vicejar no solo, num ciclo aparentemente infindável de calcinação e formação de húmus. Em Ierecê a Guaná, a região, a época e os personagens são povoações distantes da corte, alcançadas por via fluvial ou por tortuosas trilhas por militares, nos tempos do conflito armado de nosso país, Argentina e Uruguai com o vizinho Paraguai. Taunay não era dado a grandes voos de imaginação em sua produção ficcional. Seus contos e romances eram quase que inteiramente calcados em experiências pessoais. Diferentemente de um Alencar, Taunay só se encorajava a descrever os ambientes que realmente conhecia. As incursões militares de que participou na região próxima ao Paraguai deixaram marcas indeléveis em sua vida, como se verifica pela leitura das obras acima citadas. Em Ierecê a Guaná, a narrativa transcorre ao início da guerra do Paraguai. A chegada de militares à região “indicava que o governo central, fiando-se nas boas relações que entre as duas nações parecia não deverem de tão cedo sofrer quebra, cuidava, contudo, de atender para as suas fronteiras cuja tranquilidade e segurança influíam diretamente no desenvolvimento agrícola de toda aquela zona”. Trata-se de importante registro do momento de formação de um Brasil rural, um momento único para a literatura brasileira, alheio ao confronto entre o urbano e o rural (como em algumas obras de Aluísio Azevedo). A descrição que Taunay faz do protagonista Alberto Monteiro também é inédita na literatura brasileira. Não é ele um oficial militar no desempenho de alguma missão governamental. É sim um turista, viajando “por mera distração”, por desfastio. Veio do Rio de Janeiro, já passou por Montevidéu, depois por Buenos Aires e Assunção, para afinal chegar em Cuiabá. Aos seus propósitos meramente turísticos, Alberto Monteiro também soma suas veleidades de antropólogo. A descrição das belezas naturais não descamba para a fantasia romântica, estando sempre acompanhada de boa dose de realismo. Se, em alguns pontos, a serra de Maracaju “parece lavrada pela mão de caprichoso gênio empenhado em imitar com proporções colossais castelos, baluartes e outras construções que também com pedra levantam os fracos mortais”, por outro lado não esconde do leitor que o ambiente é insalubre, a ponto de fazer com que Alberto contraia uma doença (maleita) que o impedirá de seguir o trajeto inicialmente planejado com Júlio de Freitas. O cenário do conto não é o meio ambiente urbano, mas tampouco chega a ser o incipiente meio ambiente rural do romance Inocência. A província de Mato Grosso guarda ainda em si o “sertão bruto”, selvagem, não obstante as marcas da civilização europeia estejam chegando rapidamente.
José de Alencar Em José de Alencar (1829-1877), embora idealizado, o sertão também se caracteriza pela vastidão de espaços desabitados, como se depreende da leitura das primeiras linhas de seu romance O sertanejo. A adjetivação pomposa (“imensa campina”, “destemido vaqueiro”, “touro indômito”) constitui o tom peculiar de Alencar para tratar, em tese, do mesmo espaço descrito na obra de Taunay e de Guimarães. O que importa é que, também a Alencar impressionou muito a vastidão territorial e o isolamento humano no imaginário.
Ao longo dos primeiros capítulos do romance O Sertanejo, de José de Alencar, uma queimada também degenera em incêndio (“um fortíssimo estrépito que rolava como o borbotão de uma torrente”, “um turbilhão de fogo a assomar ao longe”). Contudo, o evento não é mais do que um pretexto para que o personagem Arnaldo demonstre sua coragem e, num gesto heroico, salve das chamas a donzela Flor. Alencar não demonstra preocupação social ou ecológica. O evento, em sua pena, é mera cenografia.
Manuel de Araujo Porto-Alegre O poeta que talvez tenha chegado mais perto do que podemos hoje chamar de pensamento ecológico foi Manuel de Araujo Porto-Alegre (1806-1879), autor do poema A destruição das florestas. Porto-Alegre, diferentemente dos demais autores aqui citados, chega em muitas passagens deste poema a desenvolver uma visão quase ecossistêmica. Mesmo ele, porém, em dado momento, retrata-se de sua irresignação e retoma uma frustrante racionalidade fisiocrata. Sua preocupação, em última análise, é com o desperdício de bens naturais, recursos valiosos para o crescimento econômico do país.
Conclusão
Um salto qualitativo se dá em Euclides da Cunha (1866-1909) que, na virada para o Século XX, em tópico expressivamente intitulado Como se faz um deserto, destaca a relevância dos fatores antrópicos na conformação geológica do sertão nordestino, não poupando nem mesmo o legado indígena altamente antiecológico da responsabilidade pela formação do ecossistema caatinga. Contudo, não se encontra na Literatura Brasileira do Século XIX uma consciência ecológica. Este fato, porém, não deve causar qualquer surpresa. Em que pese o fato de alguns autores buscarem no famoso “Regimento do pau-brasil”, do início do Séc.XVII, identificar os primórdios do ambientalismo, certo é que referida norma objetivava apenas evitar a superexploração e o declínio de tão lucrativo comércio. Da mesma sorte, os esforços empreendidos por José Bonifácio de Andrada e Silva, o "Patriarca da Independência", em prol de uma metodologia ecologicamente menos impactante, eram aplicações da teoria fisiocrata e não exatamente uma preocupação estritamente ecológica, voltada à proteção da fauna e da flora.
O próprio termo “ecologia” viria a ser cunhado somente em 1869 e, se é verdade que Henry David Thoreau (1817-1862) exerceu forte influência no “protoambientalismo”, não dispomos de dados que permitam sustentar repercussão de suas ideias no Brasil. O movimento ecologista é fenômeno nascido somente década de 1960. Em nossa Literatura, ele chega sobretudo pelas mãos de Ignacio de Loyolla Brandão ("Não verás país nenhum", "Manifesto Verde") e de Márcio Souza ("Galvez, Imperador do Acre", "Mad Maria"). Hoje, autoras como Maria José Silveira ("Altamira") e Natália Borges Polesso ("A extinção das abelhas") engajam-se de forma muito mais explícita à causa ambiental em suas produções literárias, pari-passu com o avanço do movimento ecológico ambientalista iniciado nas últimas décadas do Século XX e potencializado nestas duas primeiras décadas do Século XXI. O Brasil do Século XIX, diferentemente do que ocorria na Europa de então, ainda não enfrentava a oposição entre o urbano e o rural. Enquanto Baudelaire inspirava-se na imagem fugaz de uma mulher passando em meio à multidão, Alencar idealizava a virgem dos lábios de mel, Taunay reconstituía a imagem de seu amor da juventude e Guimarães construía a dedicada personagem Guaraciaba. A literatura brasileira da época ainda retratava o advento do meio ambiente rural (pré-industrial), em oposição à natureza em sua forma de “sertão bruto”, não cultivado. O choque cultural que se apresentava, assim, era o da domesticação da natureza – algo que já estava superado na Europa. Isso justifica o fato de não haver qualquer pertinência em se afirmar uma suposta ecoliteratura brasileira no Século XIX, não obstante disponhamos de um corpus literário bastante amplo para a realização de estudos de ecocrítica.
Este artigo foi originariamente publicado na edição do dia 2 de outubro de 2020 da Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares e ampliado em 03.04.2023.
GUILHERME PURVIN é escritor. Graduado em Letras e doutor em Direito pela USP. Coordena o coletivo "Laboratório Alfabético" (Oficina Literária e Clube de Leitura).