Guilherme Purvin
Numa nota de rodapé em seu artigo "Mitos e lendas Santomenses (alguns excertos), Francisco Costa Alegre refere-se à "piedade Popular", uma das variadas práticas e expressões religiosas de índole católica e atribuída ao culto privado ou comunitário. É difícil explicar a origem destas expressões, como acontece com o caso da veneração prestada a Santo Isidoro. No passado, em que a comunicação não era tão fácil como em nossos dias, muitos cultos foram se desenvolvendo à margem da Igreja Oficial, sendo por isso chamados de catolicismo popular. (Trajectórias Culturais e Literárias das Ilhas do Equador: Estudos sobre São Tomé e Príncipe. Orgs. Inocência Mata e Agnaldo Rodrigues da Silva. Campinas, SP : Pontes Editores, 2018).
No domingo, dia 14 de janeiro, ocorria justamente a festa de Santo Isidoro, na comunidade de Ribeira Afonso, localizada a cerca de 25 km da cidade de São Tomé. O trajeto foi feito em cerca de uma hora, com o Sr. José Luiz na direção do táxi.
No caminho, passamos por alguns dos pontos turísticos da ilha: a Roça Agua Izé e a Boca do Inferno.
A história da Roça Água Izé é contada por Miguel de Souza Tavares em seu romance "Equador". Está ligada a um brasileiro chamado Manuel de Vera Cruz e Almeida, natural da Bahia, que veio a se estabelecer em Príncipe logo após a independência do Brasil em 1822. Seu filho mais velho, João Maria de Souza e Almeida, "tinha apenas seis anos quando desembarcou com os pais no Príncipe, e dezessete quando ficou órfão do pai. Nessa altura já era responsável pela Fazenda Pública em S. Tomé e em breve expandiu-se para Benguela, em Angola, onde começou a comprar e a cultivar terras com notável empenho e sucesso" (p.157). Seu feito histórico foi introduzir o estabelecimento científico da cultura de cacau em São Tomé e Príncipe. "Também introduziu e ensinou o cultivo do café, do tabaco e do algodão, chegando a importar e oferecer as sementes aos agricultores locais" (p.158). Era um homem cordato e simpático e recebeu do Rei D. Luiz o título de Barão de Água Izé: "foi o primeiro homem de sangue azul e pele negra da aristocracia portuguesa. Morreu em 1869, depois de juntar todas as suas propriedades de S. Tomé na roça Água Izé, nela estabelecendo o sistema das 'dependências', que passou a partir daí a generalizar-se em todas as grandes propriedades da ilha, pela sua maior funcionalidade" (p. 158).
Muito pouco resta da Roça de Água Izé. Na primeira foto, vemos o prédio do antigo hospital da roça, ainda relativamente intacto.
Abaixo, a lateral da antiga casa grande, com passagem para as dependências do senhor proprietário da roça.
Um santomense que nos via no táxi do Sr. José Luiz gritou: "Ei, sr. Guilherme!". Era o Moisés, um amigo do Filé (de Príncipe). É que o Filé havia passado a ele o meu número de WhatsApp para acertar eventual serviço de guia turístico. Ele viu meu rosto na foto e prontamente me identificou. Esse episódio serve de indicativo para a situação do turismo num país de 200 mil habitantes: quantas pessoas estariam visitando a ilha de São Tomé nesse dia? Umas 60, talvez?
A Boca do Inferno fica logo após a Roça Agua Izé e vale uma parada para fotos. Trata-se de um bonito cenário com pedras vulcânicas muito pretas empilhadas à beira-mar. Existe uma lenda que diz que o proprietário da Roça Água Izé sempre chegava montado a cavalo na Boca do Inferno e então desaparecia, sendo magicamente transportado para Cascais, em Portugal. Boca do Inferno, assim, seria um portal de teletransporte para a metrópole.
Chegamos, finalmente, em nosso destino: a vila de Ribeira Afonso.
Ribeira Afonso é uma vila que vive essencialmente de sua produção agrícola e piscatória. Já vem enfrentando há alguns anos a crise das mudanças climáticas, por conta do avanço das marés. Ondas enormes ameaçam devorar toda a borda da aldeia e, por isso, foram construídos diques e canais de drenagem para evitar a inundação da vila costeria. A vila assumiu o compromisso junto ao Banco Mundial de impedir o crescimento para os lados e, se for preciso, avançar rumo ao interior (veja matéria a respeito). Mas, para o turista que chega pela primeira vez ao lugar, a última ideia que lhe vem à cabeça é pensar em aquecimento global. O que vimos foi uma vila em festa.
A vila estava quase que inteiramente reunida no quintal ao lado da Igreja de Santo Isidoro, ouvindo um longo sermão do padre, que falava sobre as virtudes do padroeiro, um agricultor nascido no ano de 1070 em Madrid e que ficou conhecido por sua generosidade, tornando-se o padroeiro dos camponeses e agricultores. A criançada brincava no salão da igreja que estava vazio, pois os bancos haviam sido levados para o quintal. Como aconteceu durante toda a viagem, as crianças de menos de cinco anos vinham dizer "olá!" e os menores, sem nenhuma inibição, pediam colo.
Sem espaço para ouvirmos o padre, resolvemos esperar o fim da missa do lado de fora, na calçada da rua costeira, que se achava interditada por causa da festa. O calor era intenso e não havia sombra. Sentei-me do lado de uma mulher que assava umas espigas de milho numa lata com carvão. Perguntei pelo preço da espiga (dez dobras, cerca de R$ 2,50) e pedi uma, para passar o tempo.
Como já disse noutra postagem, a maioria da população santomense é católica, mas há um número expressivo de evangélicos, adventistas e até mesmo alguns muçulmanos (no trajeto, passamos diante da única mesquita de São Tomé) e ateus. Assim, do lado de fora, havia também gente passeando e conversando na rua, comemorando os festejos, contando e ouvindo histórias.
De acordo com o Sr. José Luiz, a Festa de Ribeira Afonso já não é a mesma de antigamente. Antes, vinha muito mais gente de todos os cantos de São Tomé, para participar das comemorações. Hoje, além da cerimônia religiosa, que culmina com uma procissão, há apenas baladas à noite, onde se ouve música local e estrangeira ao som de D.Js. Eu, que estava lendo o livro "A Brincadeira", de Milan Kundera, logo me lembrei do velho Jaroslav, lamentando que a "Cavalgada dos Reis" já não atraía público e o Comitê Nacional não destinasse mais recursos financeiros para a realização da festa folclórica da Morávia.
Aproveitamos o tempo para observar um pouco mais os costumes da população local. As casas são quase todas parecidas com as da foto acima, feitas de madeira ou de alvenaria.
Nesta roda, todas as pessoas, mulheres e crianças, vestiam roupas com a mesma estampa, embora cada uma delas tivesse corte individualizado. São roupas utilizadas em dias de festa e em cerimônias especiais. Ao fundo, as instalações da Escola Básica de Ribeira Afonso.
O final do passeio foi na Praia das Sete Ondas, também citada por Miguel de Souza Tavares em seu "Equador". Paramos ali para almoçar: peixe assado e banana frita, acompanhados da cerveja local, Rozema, cuja garrafa não tem rótulo, já que não tem também concorrência.
Almoço no Coconut's Bar.
Terminamos o dia em São Tomé com uma visita à loja da Diogo Vaz, que produz o melhor chocolate do mundo. Os sorvetes também são fantásticos. Parada obrigatória! Não tivemos oportunidade de fazer uma visita à Roça Diogo Vaz. Para quem quiser conhecê-la, deve antes adquirir os ingressos na própria loja.
São Tomé, 17/1/2024
Guilherme Purvin
Comments