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  • Guilherme Purvin

O “TRATADO DOS MANEQUINS” E O PROCESSO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA EM BRUNO SCHULZ

No capítulo intitulado “Tratado dos Manequins (final)”, do livro “Lojas de canela”, o pai do protagonista começa a discorrer sobre “uma geração de seres semiorgânicos, uma pseudovegetação e uma pseudofauna, resultado de uma fantástica fermentação da matéria”:


“Pareciam seres vivos, vertebrados, crustáceos, artrópodes, mas era uma aparência enganadora. Na verdade, eram seres amorfos, desprovidos de estrutura interna, produtos de tendência imitadora da matéria, que, dotada de memória, repete por hábito as formas já adotadas uma vez. Em geral, a escala morfológica da matéria é limitada, e certa quantidade de formas se repete constantemente nos diversos pavimentos do ser.

Tais seres, móveis e sensíveis aos estímulos, porém afastados da verdadeira vida, podiam ser obtidos pela suspensão de certos coloides mais complexos numa solução de sal de cozinha. Ao fim de alguns dias, os coloides organizavam-se formando certas condensações de substâncias, que lembravam formas inferiores da fauna.

Porém, essas formas primitivas não eram nada se comparadas à riqueza e à maravilha da pseudofauna e da pseudoflora que aparecem às vezes em certos meios rigorosamente definidos. São velhos apartamentos, saturados da emanação de muitas vidas e de muitos eventos – atmosferas gastas, ricas em ingredientes específicos dos sonhos humanos, ruínas abundantes em humo de recordações, de saudades e de tédio estéril. Era nesse solo que aquela pseudovegetação germinava rápida e superficialmente, parasitava abundante e efêmera, produzia gerações de curta duração que floresciam súbita e esplendidamente, para se apagar e murchar logo em seguida.

Os papéis de parede já devem estar muito gastos e entediados com a perpétua peregrinação por todas as cadências do ritmo. Não é de estranhar que se percam nos desvios de miragens longínquas e arriscadas. A medula dos móveis, sua substância, deve estar relaxada, degenerada e sujeita a tentações devassas. E então, nesse terreno doente, esgotado e selvagem, desabrocha, parecendo uma erupção fantástico, um mofo exuberante e colorido”.

(SCHULZ, Bruno. Ficção completa. Lojas de Canela. São Paulo : Cosac Naify, 2ª ed., 2015, págs. 55 e 56).


Esta passagem da narrativa de Bruno Schulz cumpre um papel significativo na novela, podendo ser compreendida como uma metáfora do processo de criação literária. É possível afirmar que as personagens de um romance, uma novela ou um conto, cujas histórias emocionam o leitor, nada mais são do que palavras dispostas numa sequência coerente, que apresentam uma aparência enganadoramente realista. Nesse sentido, estas falsas formas de vida são seres amorfos prontos a serem modelados pelo escritor. A ausência estrutura interna será preenchida pela ação do escritor que, para tanto, procurará imitar a matéria real, valendo-se da memória e repetindo as formas que no passado já adotaram.


O demiurgo, organizador do caos existente no universo de suas memórias e de seus sonhos, a partir do recolhimento de diversos fragmentos da lembrança de sua própria história, como que colhidos ao acaso e sem aparente elo de causalidade um com o outro, é o próprio escritor, que os transforma e quase que inesperadamente nos oferece um modelo que tanto se assemelha à vida real.


Não poderia, porém, o escritor sequer iniciar o seu processo demiúrgico de criação literária se as possibilidades reais de ação cultural e natural fossem ilimitadas ou sem qualquer regra predefinida. Assim, ao ponderar, pela voz do pai, que, em geral, a escala morfológica da matéria é limitada, e certa quantidade de formas se repete constantemente nos diversos pavimentos do ser, isto significaria que existem arquétipos de personagens, que se repetem e que se confundem ao longo de sua própria existência, ou mesmo simultaneamente, numa mesma pessoa. Isto porque existem pavimentos do ser na construção de um personagem.


A aplicação de uma forma única e pura resultaria em mero estereótipo. Assim, ao escrever a novela “Lojas de canela”, Bruno Schulz vai além da utilização de seres móveis e sensíveis aos estímulos, porém desprovidos de vida verdadeira, que se obtêm laboratorialmente, a exemplo da experiência com a “suspensão de certos coloides mais complexos numa solução de sal de cozinha” que, após alguns dias, organizam-se “formando certas condensações de substâncias” (Talvez o mais adequado aqui fosse falar em cristalizações ou aglomerações, pois não se trata de transformação do estado gasoso ao estado líquido, mas de aproximação organizada de substâncias químicas num meio líquido). Uma experiência limitada como esta haverá, no máximo, resultar em lembranças de “formas inferiores da fauna”.


E então, entusiasmado, o pai ressalta que aquelas formas primitivas, resultado de condensações (cristalizações / aglomerações moleculares) não têm relevância alguma se forem comparadas à imensa diversidade de falsas formas de vida que por vezes surgem como geração espontânea em ambientes específicos, como nas residências que constituíram o cenário de muitas vidas e fatos, de sonhos, de recordações, de dores e de sonhos. A criação literária adquire uma nova dimensão, muito mais exuberante, quando o escritor consegue ir além da elaboração de tipos, por mais complexos que estes sejam, e incorpora à obra fragmentos do ambiente em que viveu, com todos os seus fantasmas e toda sua magia. É no solo da recordação que essa falsa vida sentida no romance germinará com rapidez, produzindo gerações que durarão o tempo de sua leitura.


Em nota de rodapé, o tradutor da novela observa:


Os ‘seres’ aqui descritos são certamente coacervatos, ou seja, os ‘coágulos líquidos’, uma concentração de partículas de caloide que é a matéria-prima do protoplasma das células vegetais e animais. Os coacervatos eram formas primitivas, protocelulares, de organização da matéria viva. A experiências com coacervatos dedicava-se também o pai de Adrian Leverkühn em Doutor Fausto, de Thomas Mann”. (SIEWIERSKI, Henryk. Nota de rodapé n. 3, pág. 56, in SCHULZ, Bruno. Ob. Cit.)


Na verdade, as experiências do pai de Leverkühn, descritas no romance Doutor Fausto, não eram com fenômenos biológicos, mas físico-químicos. Procurava o personagem de Thomas Mann reproduzir, a partir de experiências com sais e outros compostos inorgânicos as formas orgânicas da natureza:


“Tais fantasmagorias – perguntava ele então – prefiguravam ou arremedavam as formas do reino vegetal? E em seguida dava a si próprio a resposta: nem isto nem aquilo! Tratava-se de formas paralelas. A Natureza criativa, devaneadora, tivera o mesmo sonho em dois lugares diferentes, e se coubesse falar de imitação, essa somente seria recíproca. Deviam-se, pois, considerar os legítimos filhos dos campos como paradigmas, só porque tinham a real tridimensionalidade orgânica, ao passo que as flores de gelo eram apenas meros fenômenos? Ora, sua aparência era o resultado de uma combinação orgânica tão complexa como a das plantas, e se eu entendia bem o nosso anfitrião, o que o preocupava era a unidade da Natureza animada e da que se costuma chamar de inanimada; era a ideia de que nós pecamos contra ela, ao traçarmos com excessiva rigidez uma divisa entre ambos os territórios, uma vez que ela, na realidade, é permeável e, no fundo, não existe nenhuma capacidade que esteja reservada exclusivamente aos seres vivos e não possa ser estudada pelos biólogos, num modelo inanimado”.

(MANN, Thomas. Doutor Fausto, 2ª ed. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1984. Pág. 27).


Bruno Schulz

À primeira vista, pode parecer irrelevante a distinção entre as experiências biológicas do pai do protagonista de “Lojas de Canela” e as experiências com físico-química e química orgânica do pai do protagonista de “Doutor Fausto”. Ambos os episódios constituem sob certo ponto de vista elementos-chave para a compreensão do processo criativo do artista. No caso do romance de Thomas Mann, porém, parece-nos que a paixão do pai de Leverkühn, por mais que pudesse ser considerada uma excentricidade, era algo que poderia ser controlado laboratorialmente. Tratava-se, portanto, de experiências cientificamente comprováveis e que poderiam ser repetidas a qualquer tempo, sempre com resultados análogos. Não havia, aqui, margem para a álea, para a metafísica, para o acidental, lembranças, sonhos, esperanças e frustrações humanas sobre as quais discorre o personagem de Bruno Schulz.


Esta distinção entre as duas experiências, coincidentemente conduzidas por personagens que se apresentam como os pais dos protagonistas de duas importantes obras de ficção do Século XX, uma no campo das Ciências Exatas (Física e Química) e outro no campo das Ciências Biológicas, não é casual.


No caso de Thomas Mann, o paralelo que se faz é com a criação musical de Adrian Leverkühn: a partir de um sólido conhecimento da Física, da Matemática, da Acústica, é possível compor uma música que irá agradar aos ouvidos de uma plateia menos exigente, que se satisfaça com determinados clichês ou cujo gosto musical esteja adstrito, digamos, ao período pré-wagneriano (excluída a produção dos últimos anos da vida de Beethoven) – uso controlado de sétimas, nonas e notas dissonantes, abuso de uníssonos, acordes perfeitos, exploração de campos harmônicos bem definidos, tudo para não “chocar” os ouvidos e produzir uma música ambientalmente inofensiva. Estaria ali em jogo o desvendar do caráter demoníaco da utilização das Ciências Exatas para a manipulação dos sentimentos dos seres humanos – algo que, nos tempos atuais, é explorado à exaustão em qualquer empresa dedicada à comercialização de bens e serviços para consumo em massa – publicidade de produtos diversos, cinema, música, romances “comerciais” de vendagem garantida, videogames, teatro popular etc. Seria, assim, o mesmo que descobrir o algoritmo do sentimento humano.


Diversa é a função da passagem mencionada na parte final do “Tratado dos Manequins”. Diríamos que Bruno Schulz não pretende desvendar a fórmula científica do funcionamento da mente humana. Ele é, isto sim, um explorador extasiado (como o pai na novela), não pela proliferação de fungos, musgo e mofo, mas pelas possibilidades de uso da palavra, de elaboração de formas inéditas para descrever o que está diante de nossos olhos, de percepção do que há de belo num detalhe de um grande painel, por mais terrível e assustador possa ser esse painel em sua integralidade – uma cidade devastada, um povo cruelmente perseguido, uma ausência de esperanças. Como em A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade, caminhando por uma rua cinzenta, podemos encontrar uma flor: mesmo feia, ainda assim é uma flor, uma flor que furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Vem daí toda a beleza da obra de Bruno Schulz: saber transformar em poesia o que não é mais do que miséria, loucura e desesperança.



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