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Os Impactos Socioambientais da Mineração de Lítio no Sul Global

  • Foto do escritor: Guilherme Purvin
    Guilherme Purvin
  • há 2 dias
  • 21 min de leitura

Atualizado: há 6 horas

Guilherme José Purvin de Figueiredo


De que forma devemos iniciar a abordagem de um tema tão intrincado como é a questão minerária e suas correlações com os direitos humanos e a cultura? A mineração é tão antiga quanto a própria civilização. Basta lembrar os nomes que se costumam dar às idades iniciais na Arqueologia: idade da pedra lascada, da pedra polida, do bronze e do ferro, indicando que, no plano historiográfico ocidental, a escala utilizada para a medida do tempo é justamente o aperfeiçoamento tecnológico dos métodos de extração de minérios do planeta.


Ocorre, porém, que essa perspectiva, embora hegemônica, não é universal pois as civilizações que dominaram o processo tecnológico de extração mineral foram as que se impuseram, sobretudo pelas armas, sobre outras culturas que não almejavam seguir idêntica trilha. Observe-se, porém, a forma como se refere Caio Prado Júnior a estas culturas:


“O fato é que não se encontravam os cobiçados metais. Ao contrário do que ocorrera no México e no Peru, os indígenas, de um nível cultural muito baixo, não se tinham interessado por eles; e sua presença não fora ainda revelada ao homem.” (História Econômica do Brasil, 22ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 56).


Escrita em 1945, essa obra, integrante do cânone das ciências sociais no Brasil, foi atualizada em 1970. Em que pesem os estudos de Claude Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro ou mesmo dos irmãos Villas-Boas, Caio Prado Júnior, em 1970, persistia na visão de que culturas que não lidavam com a mineração tinham nível muito baixo. Isso, com certeza, por adotar a régua das idades da pedra lascada e polida, do bronze e do ferro. Hoje, diante do desastre ambiental e climático no planeta, bem como do estágio atual de evolução dos direitos humanos e de respeito às culturas originárias, esse tipo de avaliação seria inadmissível.


Para efeito de contraste, observemos esta passagem lapidar da obra de KOPENAWA & ALBERT:


“As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra, com tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas impregnadas de tosses e febres, que só Omama conhecia. Ele, porém, decidiu, no começo, escondê-las sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger. Por isso devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas desde sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra, que é o dorso do antigo céu Hutukara caído no primeiro tempo. O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto, que ela envolve de frescor úmido. São essas as palavras dos nossos espíritos, que os brancos desconhecem. Eles já possuem mercadorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que, fazendo isso, serão tão contaminados quanto nós somos. Estão enganados.”

(KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução: Beatriz Perrone Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 357)


A abordagem que pretendo dar a esta questão é interdisciplinar. Envolve questões ligadas às ciências ambientais, ao direito e às artes (em particular à literatura e ao cinema). Essa tensão entre diferentes regimes de saber é reconhecida por Bachelard, em sua obra Ensaio sobre o conhecimento aproximado:


“Às vezes, o equilíbrio de fatores tão heterogêneos torna-se impossível; um dos pesos pode desequilibrar irremediavelmente a balança. É o que acontece, por exemplo, quando um juízo de conhecimento é suplantado por um juízo de outra espécie; duas ordens de prática podem então, de fato, interferir e trazer à determinação de um mesmo objeto dois graus de precisão sem correspondência entre eles. (Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p. 167)


Se, sob a perspectiva da busca do conhecimento científico, ele se dá por aproximação, então a pesquisa interdisciplinar — envolvendo uma multiplicidade de áreas como geologia, economia, direito, antropologia, ecologia e artes — também deve ser compreendida nesse mesmo movimento de aproximação. Procuraremos, pois, abordar o tema por meio de múltiplas incursões, recorrendo às disciplinas mais afins à nossa formação acadêmica.


Externalização ecológica


Em setembro de 2024, a revista Quatro Cinco Um publicou um artigo intitulado “Precisamos de novas histórias sobre o clima”, da escritora norte-americana Rebecca Solnit[1]. No texto, a autora propõe uma mudança na forma de narrar a crise climática: embora muitas catástrofes estejam em curso, ela insiste que também existem coisas maravilhosas acontecendo — e que é fundamental enxergá-las. A frase que abre o artigo é decisiva: vivemos, diz ela, uma “crise de narrativa”, causada por histórias que nos impedem de ver, acreditar e agir em prol de mudanças.


Solnit propõe, assim, o abandono do modelo baseado no “consumo despudorado de poucos com consequências para muitos”. Para isso, segundo ela, é necessário reavaliar noções fundamentais como riqueza, poder, alegria, tempo, natureza e bem-viver.


Suas premissas são relevantes: apontam para a urgência de combater as desigualdades socioeconômicas e a injustiça ambiental. No entanto, o artigo silencia sobre um ponto crucial: a necessidade de transformação radical nos nossos padrões de consumo. Estaria, afinal, a autora tentando, como dizem Davi Kopenawa e Ailton Krenak, adiar o fim do mundo — mas sem alterar a estrutura que o produz?


Essa omissão é perceptível quando Solnit defende que a substituição da matriz energética seria o passo definitivo para salvar o planeta. Para ela, basta trocar o petróleo e o carvão por energia solar, eólica ou por baterias de lítio-cobalto. Afirma:


“Vejo pessoas atacarem veementemente a mineração, sobretudo de lítio e cobalto, inevitável para a construção de uma infraestrutura de energia renovável. Aparentemente, as pessoas não têm ideia do impacto e da magnitude, muito maiores, de mineração de combustíveis fósseis, petróleo, gás e carvão”.

(Revista Quatro Cinco Um, edição n. 85. O artigo está disponível online: https://quatrocincoum.com.br/artigos/meio-ambiente/precisamos-de-novas-historias-sobre-o-clima/ - acesso em 11.12.2024)


A autora é categórica: para construir um futuro verde, seria inevitável extrair lítio e cobalto em larga escala. O problema, contudo, é que essa extração ocorre longe dos centros consumidores — em países como Argentina, Bolívia, Chile, Brasil e República Democrática do Congo — onde populações locais vêm há décadas sofrendo com devastação ambiental, contaminação de águas, violência e violações sistemáticas de direitos humanos. Ao não considerar esse dado, a narrativa de Solnit corre o risco de reeditar, sob a estética da sustentabilidade, uma lógica colonial de saque e apagamento. Northexplaining explícito!


Nesse ponto, é útil retomar as palavras de Davi Kopenawa, que descreve com clareza o início da devastação ambiental promovida pelo pensamento europeu. Para ele, tudo começa com a mineração. Em sua leitura cosmológica, esse processo marca a ruptura entre um tempo ancestral — associado aos ensinamentos de Omama e à floresta viva — e o tempo moderno das mercadorias, da multiplicação e do esquecimento:


“No começo, a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. Seus antepassados mais sábios, os que Omama criou e a quem deu suas palavras, morreram.”

 “Depois deles, seus filhos e netos tiveram muitos filhos. Começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles. Omama tinha ensinado a seus pais o uso de algumas ferramentas metálicas. Mas já não se satisfaziam mais com isso. Puseram-se a desejar o metal mais sólido e mais cortante, que ele tinha escondido debaixo da terra e das águas. Aí começaram a arrancar os minérios do solo com voracidade. Construíram fábricas para cozê-los e fabricar mercadorias em grande quantidade. Então, seu pensamento cravou-se nelas e eles se apaixonaram por esses objetos como se fossem belas mulheres. Isso os fez esquecer a beleza da floresta. Pensaram: ‘Haixopë! Nossas mãos são mesmo habilidosas para fazer coisas! Só nós somos tão engenhosos! Somos mesmo o povo da mercadoria! Podemos ficar cada vez mais numerosos sem nunca passar necessidade! Vamos criar também peles de papel para trocar!’. Então fizeram o papel de dinheiro proliferar por toda parte, assim como as panelas e as caixas de metal, os facões e os machados, facas e tesouras, motores e rádios, espingardas, roupas e telhas de metal. Eles também capturaram a luz dos raios que caem na terra. Ficaram muito satisfeitos consigo mesmos. Visitando uns aos outros entre suas cidades, todos os brancos acabaram por imitar o mesmo jeito. E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda a terra de seus ancestrais. É o meu pensamento. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta quase nada da floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra”.

KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução: Beatriz Perrone Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2015. Pp.407-408.


Esse trecho permite realocar os termos do debate. A crítica de Kopenawa não é ao consumo em si, mas ao modo como o desejo de posse transforma tudo em mercadoria, inclusive a floresta, a água, os corpos. Ele mostra que a mineração — em seu vínculo com a lógica da mercadoria e do dinheiro — não é apenas uma atividade econômica, mas o símbolo de uma ruptura civilizatória. Em sua perspectiva, a destruição começou na própria Europa, quando os brancos abandonaram a palavra de Omama, multiplicaram suas fábricas, cidades e objetos, e exportaram essa lógica para todo o planeta.


Ensina Julio César Suzuki:


“Território, modo de vida e patrimônio cultural são imbricados vértices que articulam a própria identidade das sociedades tradicionais brasileiras, para as quais a memória social é mediação fundamental de luta contra a expropriação e a violência.”

(SUZUKI, Júlio César. Território, modo de vida e patrimônio cultural em sociedades tradicionais brasileiras. Espaço e Geografia, Brasília, v. 16, n. 2, p. 368, 2013.)



Esta afirmação dialoga com a cosmologia de Kopenawa e com a noção de que a mineração apaga vínculos intergeracionais e formas autônomas de relação com a terra. A memória, nesse contexto de apagamento territorial e cultural causado pela mineração, é tanto ato de resistência quanto categoria política.


De acordo com a clássica divisão arqueológica entre Idade da Pedra, Idade do Bronze e Idade do Ferro, os antepassados sábios teriam vivido na Idade da Pedra, ou seja, até 3.000 a.C. Sua tecnologia limitava-se a ferramentas rudimentares e ao domínio do fogo. Eram organizados socialmente em tribos nômades no início e, depois, em aldeias agrícolas. A economia consistia na coleta e caça, até que, no Neolítico, introduziu-se a agricultura. Viviam em cavernas, tendas, ocas de palha. Seriam, enfim, os povos paleolíticos, neolíticos do Crescente Fértil.


Se aceitarmos a divisão tradicional da arqueologia europeia em Idade da Pedra, do Bronze e do Ferro, podemos dizer que o rompimento apontado por Kopenawa coincide com o início da mineração e da metalurgia. O surgimento da moeda, ainda segundo ele, não seria apenas um avanço econômico, mas um gesto simbólico: a institucionalização da separação entre o humano e a terra. Essa separação reafirma-se a cada etapa do capitalismo e a chamada “transição energética” baseada na extração massiva de lítio e cobalto — sem mudar o padrão de consumo, especialmente nos EUA — nada mais é do que a repetição dessa ruptura em novas formas.

Em artigo publicado no dia 17/2/2025 n’O Eco, onde sugeri que a defesa da produção de energia por baterias de lítio-cobalto como ecologicamente sustentável não passa de verdadeiro greenwashing discursivo, afirmei que extração minerária de lítio e de cobalto é, por definição, não-sustentável.


Quero aqui aprofundar o tema, partindo de conceitos básicos de direito ambiental.


A expressão “desenvolvimento sustentável” surge formalmente no Relatório Brundtland, publicado em 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas (ONU). Consiste ele numa ideia de desenvolvimento “que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem às suas próprias necessidades”.


O símbolo da reciclagem, formado por três flechas em círculo, representa os três princípios da sustentabilidade: reduzir, reutilizar e reciclar. Essa lógica busca minimizar o desperdício e maximizar a eficiência do uso dos recursos naturais. No entanto, a Segunda Lei da Termodinâmica estabelece que, em qualquer processo energético, a entropia (desordem) aumenta, tornando impossível a reciclagem perfeita.


A reciclagem reduz a degradação dos recursos, mas sempre há perdas de energia e qualidade do material. Por exemplo, plásticos reciclados tendem a perder propriedades mecânicas, metais podem sofrer contaminação e o reaproveitamento de energia térmica nunca é 100% eficiente. Assim, mesmo com um ciclo de reciclagem eficiente, haverá degradação progressiva dos materiais e necessidade de insumos novos.


Isso significa que a sustentabilidade precisa ir além da reciclagem, priorizando redução do consumo e reutilização para minimizar a extração de recursos. Em última análise, a economia circular busca adiar a inevitável dissipação da energia e dos materiais, mas não pode anulá-la, pois a degradação é um processo físico inevitável.


Quando um morro é desmontado para mineração, ocorrem impactos irreversíveis em sua estrutura geológica, bioma e dinâmica ambiental. Em primeiro lugar, a topografia (relevo original) é alterada permanentemente, afetando a drenagem natural, o regime hídrico e a estabilidade do solo. Sem a vegetação que protegia a superfície, há um aumento da erosão e riscos de deslizamentos. Flora e fauna são extintas localmente, e espécies nativas podem não se recuperar mesmo após décadas. Rejeitos tóxicos e sedimentos podem contaminar rios, prejudicando ecossistemas aquáticos e comunidades locais. A remoção da vegetação altera a umidade e a temperatura da região, afetando o microclima.


Para atender às necessidades do presente, as sociedades necessitam de energia. Para não comprometer as necessidades das gerações futuras, a energia a ser consumida deve ser renovável — ou seja, deve ser reposta à medida em que é consumida.


Energia renovável é aquela obtida de fontes naturais que se regeneram continuamente, sendo consideradas inesgotáveis em escala humana. 


A Energia Solar enquadra-se nesse conceito, pois a geração de eletricidade pode ser contínua, a partir da radiação solar, desde que o céu não esteja encoberto. Para tanto, são necessários painéis fotovoltaicos ou coletores solares térmicos. Também é renovável a Energia Eólica, que é capturada pelo movimento do vento em turbinas eólicas e transformada em energia elétrica. A Energia Hidrelétrica é renovável, desde que a água nos rios e represas não seque. Por força gravitacional, essa água movimenta turbinas e gera eletricidade. Ainda podemos pensar em outras fontes de energia renovável, como a geotérmica (extração do calor do interior da Terra) e a energia maremotriz, que utiliza o movimento das marés e das ondas para geração de energia elétrica.


Por ora, não levarei em consideração o processo de produção de energia elétrica a partir destas fontes renováveis de energia. Deixo apenas registrados que todos eles podem causar danos ambientais. A obtenção de energia elétrica por força maremotriz impacta ecossistemas costeiros e altera a dinâmica das marés, afetando a migração de peixes. Turbinas eólicas podem matar aves e morcegos por colisão e geram poluição sonora.


Há, assim, que se afastar de vez o equívoco de achar que obtenção de energia renovável não provoca danos ambientais. Sim, os provoca, mas em escalas que podem variar significativamente O dano ambiental pode variar da perda de habitats naturais nas áreas onde são instaladas grandes usinas solares à drástica elevação da temperatura no planeta no caso da geração de energia por combustíveis fósseis.


Outro ponto importante a se distinguir é que existem fontes de energia e existem depósitos de energia. O sol, a madeira em combustão, as reações químicas numa pilha de Zn/MnO2, os ventos, as marés, a fissão nuclear controlada de Urânio-235, são todos exemplos de fontes de energia.


Diferentemente, são depósitos de energia as baterias de Lítio-Cobalto ou Ferro-Ar, as hidrelétricas reversíveis (pumped hydro storage) e volantes de inércia, o ar comprimido, hidrogênio e o armazenamento térmico são opções emergentes. Nenhuma dessas tecnologias gera eletricidade por si só, elas apenas guardam energia para uso posterior.


Foto: (c) Guilherme Purvin (Salina Grande, Jujuy - AR, 2025)
Foto: (c) Guilherme Purvin (Salina Grande, Jujuy - AR, 2025)

Ao apontarem o dedo para as políticas não sustentáveis dos governos da América Latina, estariam os países desenvolvidos adotando políticas e medidas nacionais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e mitigar a mudança do clima? Estariam transferindo recursos tecnológicos e financeiros para países em desenvolvimento? Estariam auxiliando os países em desenvolvimento, particularmente os mais vulneráveis à mudança do clima, na implementação de ações de adaptação e na preparação para a mudança do clima, reduzindo os seus impactos?


Trago aqui as advertências de Mayela Sánchez García, que recentemente (20/2/24) alertou para o paradoxo da substituição de combustíveis fósseis por recursos minerais cuja extração e refinamento impactam negativamente os ecossistemas, as espécies e as comunidades:


É o que acontece com o lítio, um mineral que era tradicionalmente utilizado no vidro e na cerâmica por proporcionar maior aderência e dureza. Atualmente, ele é utilizado principalmente na fabricação das baterias usadas pelas tecnologias que evitam ou reduzem o uso de combustíveis fósseis. E isso tem aumentado a sua procura, mascarando ou minimizando os graves impactos sociais e ambientais que a sua extração implica. [1]


As principais reservas de lítio estão nos salares, muito atraentes para indústria de mineração em razão dos baixos custos operacionais para sua extração. Os salares do norte da Argentina, sul da Bolívia e norte do Chile concentram 54% dos recursos mundiais de lítio. No entanto, nessas regiões existem comunidades, ecossistemas e espécies que dependem desses salares para sua pecuária de pequeno porte e para a agricultura de subsistência, “atividades que necessitam de água - um bem escasso nessas latitudes”. A extração de lítio envolve um consumo astronômico de água e, por isso, constitui ameaça de morte a essas áreas úmidas andinas. E conclui a autora: “A transição energética é urgente, mas deve ser justa e não feita à custa da extração de outros recursos naturais que colocam em risco as pessoas e o ambiente”.


As advertências de Mayela Sánchez García sobre os impactos socioambientais da extração de lítio oferecem uma reflexão essencial para os debates sobre a transição energética. Elas expõem com clareza um paradoxo fundamental: ao buscar soluções para a crise climática por meio da substituição de combustíveis fósseis, corremos o risco de repetir padrões de exploração e degradação ambiental e social, especialmente no Sul Global.


De acordo com reportagem de Caio Guatelli, publicada na Folha de S.Paulo (2023), o Vale do Jequitinhonha (MG) está se transformando em um polo estratégico de exploração de lítio, em meio à crescente demanda internacional por minerais críticos voltados à transição energética. Tradicionalmente associado à pobreza extrema — razão pela qual recebeu historicamente o epíteto de “vale da miséria” —, a região passou a ser rebatizada como Lithium Valley após a instalação de operações industriais da mineradora canadense Sigma Lithium.


A empresa, que abriu capital na bolsa Nasdaq, estima produzir 18 mil toneladas de carbonato de lítio equivalente (LCE) em 2023 e até 37 mil toneladas em 2024, com previsão de faturamento na ordem de US$ 1,5 bilhão. Municípios como Araçuaí e Itinga, epicentros das atividades, já registraram aumento significativo na arrecadação de impostos, como o ISS, que cresceu cerca de mil por cento. No entanto, indicadores socioeconômicos, como a renda per capita, permanecem entre os mais baixos do país, segundo o IBGE.


A intensificação da atividade minerária tem suscitado conflitos socioambientais. O Ministério Público de Minas Gerais considerou ilegal a autorização concedida à Sigma para atuar em Área de Proteção Ambiental (APA) na Chapada do Lagoão, que abriga diversas nascentes e comunidades quilombolas. Moradores denunciam impactos como poluição hídrica, rachaduras em residências, aumento da poeira e ruídos constantes, além da ausência de consultas prévias conforme estabelece a Convenção 169 da OIT.


A Sigma afirma adotar boas práticas ambientais, como o empilhamento de rejeitos a seco e uso de energia renovável, além de desenvolver iniciativas sociais pontuais, como doação de cestas básicas e microcrédito para mulheres. Entretanto, especialistas apontam a carência de planos efetivos de fechamento de mina e de mecanismos de participação comunitária nos processos decisórios.


Por fim, o governo de Minas Gerais tem promovido o “Projeto Vale do Lítio”, com o objetivo de fomentar a cadeia produtiva do mineral. Contudo, críticas indicam que a ênfase das políticas públicas permanece voltada à expansão econômica e à exportação do lítio, com pouca atenção à justiça socioambiental. (Fonte: GUATELLI, Caio. Vale do Jequitinhonha vira 'Lithium Valley' e acende debate sobre a exploração de lítio. Folha de S.Paulo, São Paulo, 15 jun. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/ciclocosmo/2023/06/vale-do-jequitinhonha-vira-lithium-valley-e-ascende-debate-sobre-a-exploracao-de-litio.shtml. Acesso em: 7 maio 2025).



Foto: (c) Guilherme Purvin (Salina Grande, Jujuy - AR, 2025)
Foto: (c) Guilherme Purvin (Salina Grande, Jujuy - AR, 2025)

É possível uma transição energética não-colonialista, justa e sustentável?


A ideia de substituir combustíveis fósseis por baterias de lítio / cobalto é sedutora, mas esconde uma realidade complexa, seja sob o aspecto ambiental, o social e, também, o político.


Sob a perspectiva ambiental, a extração de lítio nos salares da Argentina, Bolívia e Chile exige um consumo massivo de água em regiões já caracterizadas pela escassez hídrica. Para produzir uma tonelada de lítio, são necessários cerca de 2 milhões de litros de água. Isso afeta drasticamente ecossistemas sensíveis, como áreas úmidas andinas, e ameaça espécies endêmicas.


É inegável, por outro lado, o impacto social. Comunidades indígenas e camponesas dependem dos recursos hídricos desses salares para suas práticas tradicionais de pecuária de pequeno porte e agricultura de subsistência. A escassez de água causada pela mineração de lítio compromete seus modos de vida, levando à insegurança hídrica, conflitos sociais e deslocamento forçado.


Politicamente, por fim, estamos diante de evidente quadro de colonialismo extrativo. Algumas das maiores reservas de lítio estão localizadas em países do Sul Global (Argentina, Bolívia, Chile) e são exploradas principalmente para atender à demanda dos países do Norte Global. Esse padrão mantém uma relação neocolonial em que os recursos são extraídos em detrimento das populações locais, enquanto os benefícios são apropriados por indústrias e consumidores do Norte.


Os salares são ecossistemas únicos e frágeis. Sua exploração intensiva traz consequências alarmantes. A retirada de grandes volumes de água subterrânea para extrair lítio causa o rebaixamento dos lençóis freáticos, levando à desidratação dos salares e à perda de biodiversidade. Espécies adaptadas a esses ecossistemas dependem dos salares para se alimentar e se reproduzir. A destruição desses habitats pode levar à extinção local de espécies. Já as comunidades que habitam essas regiões têm tradições ancestrais de uso sustentável dos recursos naturais. A mineração de lítio coloca em risco suas atividades econômicas e culturais, gerando tensões sociais e resistência.


A conclusão de Mayela Sánchez García é clara: a transição energética é urgente, mas deve ser justa e sustentável. Isso significa que a busca por alternativas aos combustíveis fósseis não pode reproduzir injustiças históricas, sendo necessário evitar que os países do Sul Global e suas populações continuem sendo explorados para sustentar os padrões de consumo do Norte Global.


Cabe, porém, indagar se é possível proteger áreas como os salares andinos a partir da permissão de um processo de mineração. Ou seja, se não existe mineração sem impacto ambiental, é possível garantir que este impacto seja mínimo e que compensados adequadamente? Como definir o que seria uma “compensação adequada” quando o que está em jogo é a preservação de modos de vida próprios de comunidades locais?


Busca-se impedir que sejam ignorados os direitos das comunidades locais. As populações afetadas devem ter voz ativa nas decisões sobre a exploração de recursos e se beneficiar de forma justa desses processos. Nesse sentido, dispõe a Convenção 169 da OIT, em seu artigo 15:


Artigo 15 1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.  2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.


Embora a Convenção 169 da OIT constitua um dos mais importantes documentos internacionais em defesa das comunidades originárias, ele mantém estas comunidades numa posição de submissão à decisão final pela concessão de licença para mineração e até mesmo para desalojamento da população. A situação é de total fragilidade ante o direito internacional, como se depreende do art. 16.1 que, depois de afirmar que os povos interessados não devem ser transladados das terras que ocupam, em seguida esvazia essa garantia, estabelecendo:


16.2. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.


Restaria socorrer-se da “responsabilidade corporativa”, na esperança de garantir que empresas de mineração adotem práticas ambientalmente responsáveis e respeitem os direitos humanos e os direitos das comunidades indígenas. Ocorre que hoje, como denunciam CARNEIRO e DUARTE,


certas “políticas de participação social” substituem em parte as técnicas de coerção e violência encontradas no passado colonial. Várias práticas empresariais caminham no mesmo sentido. Existe, por exemplo, o procedimento baseado no “Consentimento Livre, Prévio e Informado” (em inglês, Free, Prior and Informed Consent – FPIC), que propõe estabelecer a consulta sobre a atividade de uma empresa “de baixo para cima”. Com isto, antes do início de um empreendimento, deve-se fazer uma consulta prévia à população localizada nas terras onde serão realizadas as atividades extrativas, e em suas redondezas. Owen e Kemp (2014) mostram que os princípios do FPIC impõem às empresas requisitos mais rigorosos de desempenho social, mas, por outro lado, em geral são estratégias ambíguas e não geram soluções efetivas em prol das comunidades, pois elas não têm o direito de deliberar sobre as decisões do empreendimento. Por fim, o resultado da FPIC acaba sendo a desmobilização das bases.[2]


As advertências de Mayela Sánchez García ressaltam a importância de questionar o modelo atual de transição energética, que corre o risco de ser uma solução parcial e injusta. A extração de lítio e cobalto para baterias de tecnologias "verdes" não pode ser uma desculpa para repetir os erros do colonialismo extrativista.


Uma transição energética justa deve considerar não apenas a redução das emissões de carbono, mas também a proteção dos ecossistemas, o respeito às comunidades locais e a construção de um futuro em que a sustentabilidade ambiental e a justiça social caminhem juntas. Ao que tudo indica, porém, isto não é possível dentro da lógica econômica ultraliberal.


Da mesma forma que ocorre em qualquer forma de licenciamento ambiental, as audiências públicas não têm caráter deliberativo, isto é, não podem diretamente vetar um empreendimento. Servem apenas como um mecanismo de consulta e coleta de subsídios, permitindo que a população manifeste suas preocupações e “contribua” para o processo de licenciamento ambiental, dentro da lógica já denunciada por CARNEIRO e DUARTE. A alternativa que resta é a mobilização política permanente em defesa da vida. E, em última análise, a opção por um modelo de sociedade radicalmente menos dependente do consumo de energia elétrica.


Foto: (c) Guilherme Purvin (Salina Grande, Jujuy, AR - 2025)
Foto: (c) Guilherme Purvin (Salina Grande, Jujuy, AR - 2025)

De acordo com a Cáritas Brasileira – Secção de Minas Gerais, no Brasil, desde 2020, pelo menos, moradores do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, estão sendo forçados a conviver com graves alterações socioambientais provocadas pela extração de lítio na região, liderada pela mineradora Sygma Lithium e pela Companhia Brasileira de Lítio. A mina Grota do Cirilo, aberta pela Sygma, está entre os municípios de Araçuaí e Itinga e suas atividades já alteraram profundamente o meio ambiente local. 


Na exploração mineral do lítio, o primeiro impacto socioambiental é a alteração da paisagem, pois a extração mineral aqui no Brasil acontece através de minas a céu aberto. Ou seja, para que uma barragem seja instalada, é preciso que aconteça um desmatamento severo da região, além da retirada de todo o solo fértil. Nas palavras de Bruno Milanez, do Grupo de Pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), a mineração provoca uma “amputação da paisagem”. Mesmo as mineradoras com os melhores métodos de gestão ambiental, recirculação de água, máquinas e equipamentos modernos, quando se fecha uma mina, a montanha não está mais lá, mas sim uma cicatriz descomunal. Com alteração da paisagem, há mudanças no microclima, na fauna, flora e em toda a dinâmica hidrológica. Além disso, há a poluição atmosférica, consequência severa do modelo de extração mineral no Brasil, quando barragens são construídas próximas às comunidades. Nestes casos, a poluição é causada pela lama e pela poeira, trazidas das minas para as comunidades por meio dos ônibus, caminhões e automóveis que atendem as mineradoras.[3]


Com relação ao cobalto, a situação é ainda mais trágica e foi amplamente denunciada por ocasião das Olimpíadas em Paris – razão pela qual é imperdoável a relativização que se faz das trágicas consequências desse tipo de mineração.


A boxeadora Marcelat Sakobi, congolesa alertou o mundo sobre a violência em seu país ao apontar uma das mãos na cabeça, como se fosse uma arma, e colocar três dedos nos lábios, para sinalizar o silêncio.


Marcelat Sakobi denuncia violência na RDC durante Olimpíadas de Paris (2024) - Foto: Getty Images
Marcelat Sakobi denuncia violência na RDC durante Olimpíadas de Paris (2024) - Foto: Getty Images

A República Democrática do Congo sofre com ataques violentos há mais de 20 anos, fruto de uma guerra civil entre grupos armados locais e o exército, e pouco se fala sobre isso na mídia. É esse o cenário de um país do qual é exportado o minério necessário para movimentar os carros elétricos dos europeus e estadunidenses.


Reporto-me aos dados da Anistia Internacional a tal respeito. Novo relatório documentou a forma como os negociantes de minérios compram cobalto de áreas onde o trabalho infantil é frequente e o vendem à Congo Dongfang Mining (CDM), uma empresa congolesa subsidiária da gigante mineira chinesa Zhejiang Huayou Cobalt Ltd (Huayou Cobalt):


 “A investigação da Anistia Internacional contém documentos de pesquisadores no setor que demonstram como a Huayou Cobalt e a subsidiária CDM processam o cobalto antes de o venderem a três fabricantes de componentes de baterias na China e na Coreia do Sul. E estes, por sua vez, fornecem fabricantes de baterias que dizem vender os seus produtos a grandes empresas de tecnologia e do sector automóvel como a Apple, a Microsoft, a Samsung, a Sony, a Daimler e a Volkswagen.”


Emmanuel Umpula, diretor-executivo da organização não-governamental AfreWatch-Africa Resources Watch, ressaltou que:


“Os abusos nas minas continuam sem que ninguém os veja e sem que ninguém pense neles, porque no atual mercado mundial os consumidores não fazem ideia nenhuma sobre as condições de trabalho nas minas, nas fábricas e nas linhas de montagem. A nossa investigação descobriu que os negociantes estão a comprar cobalto sem fazerem quaisquer perguntas sobre como e onde foi extraído”.


A República Democrática do Congo produz pelo menos 50% do cobalto mundial.


A Anistia Internacional colheu o depoimento de várias crianças que chegam a trabalhar 12 horas seguidas nas minas, transportando cargas pesadas em troca de um ou dois dólares por dia.


Segundo a Unicef, há dez anos havia quase 40 mil crianças trabalhando em minas no Sul daquele país.

NOTAS

[2] CARNEIRO, Ana & DUARTE, Adriano. As grandes corporações frente às comunidades locais: uma leitura do debate internacional. In: ACSELRAD, Henri. Neoextrativismo e Autoritarismo: Afinidades e convergências. Rio de Janeiro : Garamond, 2022. P. 117.



Sobre o autor: Guilherme José Purvin de Figueiredo, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, com graduação também em Letras pela mesma instituição, desenvolve pesquisa pós-doutoral no Departamento de Geografia da FFLCH-USP, dedicando-se ao estudo das interfaces entre Literatura, Ecologia e Mineração na cultura andina. Idealizador do curso "Literatura e Ecologia" do Programa Apolo-USP, desenvolve investigações transdisciplinares nas áreas de Direito Ambiental, Geografia e Literatura. Exerce a coordenação internacional do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, além da Academia Latino Americana de Direito Ambiental. Autor de obras jurídicas e literárias, publicou recentemente seu quinto livro de contos, "Onde começa o hemisfério".


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