Mineração e Literatura Social na América Latina
- Guilherme Purvin
- há 4 dias
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Atualizado: há 21 horas
Guilherme José Purvin de Figueiredo

A história da América Latina, em particular dos países que integravam o Vice-Reino do Peru (Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, norte do Chile e norte da Argentina) está profundamente ligada à exploração mineral.
Quando os espanhóis chegaram em 1532, o Império Inca, então dividido pela guerra entre Atahualpa e Huáscar, controlava um vasto território de mais de 4.000 km, dos Andes colombianos ao norte do Chile. Francisco Pizarro capturou Atahualpa em Cajamarca, exigindo um resgate em ouro e prata — metais sagrados para os incas, extraídos de minas como as de Chuquiago (La Paz) e Coricancha (Cusco). Apesar do pagamento, Atahualpa foi executado em 26 de julho de 1533. [1] Nos anos seguintes, a resistência inca continuou em Vilcabamba até 1572, com a morte de Tupac Amarú, enquanto os espanhóis iniciavam a exploração em larga escala de minas como Potosí, usando trabalho indígena forçado. Assim, desde a Conquista, a mineração moldou a economia e a tragédia social do Peru.

O então chamado Alto Peru (atual Bolívia) integrou o Vice-Reino do Peru desde sua criação em 1542 até 1776, quando foi transferido para o Vice-Reino do Rio da Prata por decisão do rei Carlos III. Essa mudança visava otimizar o controle espanhol sobre a prata de Potosí, cuja exploração sustentou economicamente ambos os vice-reinos. A Audiência de Charcas (com sede em Sucre) manteve jurisdição sobre Potosí até 1810, mesmo após a reorganização política. Essa divisão administrativa reforçou o papel central da Bolívia no sistema colonial, enquanto sua riqueza mineral alimentava o império espanhol.
Eduardo Galeano revela como a exploração mineral em Potosí, definiu um ciclo de riqueza efêmera e destruição duradoura. Entre os séculos XVI e XVII, a região foi o maior centro produtor de prata do mundo, sustentado pelo trabalho forçado indígena (mita). [2] Em meados do Século XVII, a jazida de Potosi fornecia mais da metade da produção total de prata das Américas e a cidade mais alta do mundo (4090 metros de altitude) tornou-se um vasto complexo industrial contando com cerca de 200 mil habitantes.[3]
O custo humano foi catastrófico: 8 milhões de mortos em condições brutais, enquanto a prata enriquecia a Europa. Com o esgotamento das minas, Potosí transformou-se em símbolo de decadência. O que restou foi a exploração de estanho - metal antes ignorado pelos colonizadores - e cidades abandonadas como Huanchaca. A frase "a cidade que mais deu ao mundo e a que menos tem" sintetiza essa ironia histórica. A elite colonial desperdiçou a riqueza em ostentação: igrejas folheadas a prata, festas absurdas e rituais religiosos suntuosos que mascaram a exploração. Enquanto isso, a população indígena morria de doenças e fome. Sucre, antiga capital cultural, viu seus palácios virarem escolas e suas igrejas se transformarem em depósitos, testemunhando o colapso de um sistema predatório. Citando André Gunder Frank, Galeano explica o paradoxo: as regiões mais exploradas no passado são hoje as mais pobres. Potosí é o exemplo perfeito — sua riqueza foi extraída sem beneficiar a população local, criando um legado de subdesenvolvimento. Hoje, as ruínas de Potosí atraem turistas, mas a cidade vive na pobreza, enquanto o Cerro Rico, esvaziado e instável, permanece como monumento à ganância colonial. A mineração não foi apenas atividade econômica, mas instrumento de genocídio e dependência, cujas consequências ainda moldam a realidade latino-americana.[4]
A decadência de Potosí constituiu efeito direto da renda oriunda da extração mineral: esta renda financiou um estado de bem-estar social não sustentável, que evidentemente ruiu com o esgotamento das jazidas. MATHIS et alii, a tal respeito, afirmam:
“A renda oriunda da extração mineral pode causar vários efeitos não-intencionados (...). Tais efeitos são: 1) a disponibilidade modernizante sobre a agricultura, a indústria ou o setor de serviços, levando assim ao adiamento de reformas e racionalizações necessárias, enfraquecendo assim a posição do país no mercado mundial; 2) a renda mineral pode ser usada para financiar um welfare state sem base própria, que necessariamente desmorona ao fim do ciclo da mineração; 3) o financiamento de importações, inclusive de alimentos através da renda mineral, faz o país extremamente dependente do desenvolvimento do mercado mundial, tanto para os bens de consumo quanto para os bens minerais; 4) a queda do preço do mineral —observam-se oscilações que atingem piques de até 40% (cobre entre 1965 e 1975) — restringe o orçamento público levando a graves crises sócio-econômicas”.[5]

A literatura peruana do Século XX nos oferece importantes romances versando sobre as trágicas consequências da exploração minerária na vida do campesinato. O grande poeta César Vallejo chegou a incursionar no tema, com seu romance Tungstênio, que começa da seguinte forma:
“Proprietária das minas de tungstênio de Quivilca, a empresa norte-americana Mining Society, de Cusco, e a gerência de Nova Iorque, decidiram começar de imediato a exploração do mineral.
Uma avalanche de trabalhadores e empregados saiu de Colca e de outras paragens, rumo às minas. A esta avalanche se seguiram outras, todas contratadas para a ocupação e os trabalhos nas minas. O fato de não se encontrar mão de obra necessária nos arredores e comarcas vizinhos das jazidas, tampouco nas quinze léguas em redor, obrigou a empresa a trazer de aldeias e povoações rurais uma enorme horda de índios, destinada ao trabalho nas minas.
O dinheiro começou a circular muito rápido e com abundância em Colca, capital da província onde se situavam as minas. As transações comerciais atingiram proporções nunca vistas. Em todos os lados, nos bares e mercados nas ruas e nas praças, pessoas faziam compras e operações econômicas. Muitas propriedades urbanas e rurais trocavam de donos, os cartórios e os tribunais ferviam constantemente. Os dólares da Mining Society injetaram no cotidiano provinciano, antes tão afável, um movimento extraordinário.
Todos estavam diferentes. Até a maneira de andar, antes lenta e arrastada, se tornou ligeira e agitada. Os homens caminhavam vestidos de verde, botas com polainas e calças de montar; falavam sobre dólares, documentos, cheques, selos fiscais, minutas, cancelamentos, tonelagem, ferramentas, mas tudo sob um tom de voz distinto. As jovens dos arredores passeavam para vê-los, uma doce inquietação as faziam estremecer, imaginando os minerais remotos, cujo encanto exótico as atraíam de modo irresistível. Sorriam, enrubesciam e perguntavam:
— Você vai para Quivilca?
— Sim, amanhã cedo.
— Vai ficar rico nas minas!
Assim nasciam os idílios e as paixões, que iriam logo se aninhar nas abóbadas sombrias de veios fabulosos. Com o primeiro lote de operários e mineiros, chegaram em Quivilca os gerentes, diretores e executivos. De início, vieram mister Taik e mister Weiss, gerente e subgerente da Mining Society; (...). [6]
Em seu romance “Todas las sangres”, José María Arguedas, outro grande nome da Literatura Peruana, também trata da mineração, que é apresentada como um elemento de transformação econômica e social a afetar tanto os indígenas quanto os senhores feudais. A empresa Whister and Bozart, representando o capitalismo internacional, exerce grande influência, alterando as relações de poder locais e desafiando o controle tradicional dos terratenentes sobre o Estado. A mineração também é descrita como uma "tentação" para os indígenas, oferecendo trabalho assalariado, mas ao mesmo tempo mantendo a dominação local sobre eles.
Mas é na pentalogia A Guerra Silenciosa de Manuel Scorza que encontramos um quadro amplo da resistência camponesa à exploração mineral nos Andes, sobretudo o período de 1950 a 1962.
[1] Miguel León-Portilla indica data diferente: “A 29 de agosto de 1533 o Inca Atahualpa morria justiçado” (A conquista da América Latina vista pelos indígenas, 5ª ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2023. p. 139). Fontes espanholas (ex.: Jerez) datam a execução em 26/07; tradições indígenas, em 29/08. A diferença pode derivar do calendário juliano ou da percepção do processo como um evento prolongado.
[2] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina, 29ª ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1989. Pp. 43-49.
[3] DESHAIES, Michel. Mines et environnement dans les Amériques: les paradoxes de l’exploitation minière. Online: https://journals.openedition.org/ideas/1639 . Acesso em 03.Mai.2025.
[4] GALEANO, Eduardo. Op. Loc. Cit.
[5] MATHIS, Armin, BRITO, Daniel Chaves de, BRÜSEKE, Franz Josef. Riqueza Volátil: A mineração de ouro na Amazônia. Belém : Cejup, 1997. P.20
[6] VALLEJO, César. Tungstênio. São Paulo : Iluminuras, 2021. Pp. 9-10.
Sobre o autor: Guilherme José Purvin de Figueiredo, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, com graduação também em Letras pela mesma instituição, desenvolve pesquisa pós-doutoral no Departamento de Geografia da FFLCH-USP, dedicando-se ao estudo das interfaces entre Literatura, Ecologia e Mineração na cultura andina. Idealizador do curso "Literatura e Ecologia" do Programa Apolo-USP, desenvolve investigações transdisciplinares nas áreas de Direito Ambiental, Geografia e Literatura. Exerce a coordenação internacional do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, além da Academia Latino Americana de Direito Ambiental. Autor de obras jurídicas e literárias, publicou recentemente seu quinto livro de contos, "Onde começa o hemisfério".
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