- Guilherme Purvin -
Há 16 anos, Nuno Passos escreveu um artigo intitulado "Primeira gravação portuguesa tem 107 anos" para o Diário de Notícias, de Portugal, no qual afirma que, por muito tempo, a mais antiga gravação de um fado conhecida datava de 1902. O seu cantor era o brasileiro Manuel Pedro dos Santos, mais conhecido como o Bahiano. O autor, contudo, não traz qualquer referência ao título da gravação que poderia ser tida como o primeiro fado. O que se sabe é que o Bahiano foi o primeiro cantor profissional no Brasil e a primeira pessoa a gravar um disco, que susbstituiu os antigos cilindros gravados. Dentre os seus registros musicais está a conhecida canção "Pelo telephone", de Donga, sempre lembrada como nosso primeiro samba. Confira-se, a respeito, o artigo "Linha do tempo: Manoel Pedro dos Santos, o Bahiano", no site "E com vocês, os Souza!".
Nuno Passos, no citado artigo para o Diário de Notícias, informa que, em 2007, o investigador alentejano José Moças encontrou num vendedor de discos nas ruas do Porto dois registros anteriores ao do cantor brasileiro. Tratava-se do "Fado Hylario", de Duarte Silva, e "Oh Julia, de José Brito, ambos qualificados como tenores portugueses. Os discos, uma raridade, têm o selo Berliners, antecessora da Gramophone, hoje EMI e são datados de 1900. Considerando que o gramofone havia sido inventado quatro anos antes, é muito difícil imaginar que existissem gravações anteriores a 1900.
O Fado Hylario foi imortalizado na voz de Amália Rodrigues, como se pode ouvir aqui:
A composição é de Augusto Hylario, cantor e compositor nascido em Viseu no ano de 1864 e falecido em 1896. É ele considerado o cantor que deu ao fado de Coimbra a forma que até hoje se mantém, conforme informações colhidas aqui.
Mas, da mesma forma que é um erro pensarmos que "Pelo telefone" foi o primeiro samba, também o é acharmos que este ou aquele canto seria o primeiro fado. Podemos, se tanto, identificar a primeira gravação de uma canção com esta etiqueta, mas quantas não teriam existido ao longo do século XIX ou mesmo antes, transmitidas pela tradição oral? Isto vale para todo tipo de música, inclusive blues, polcas, lundus, maxixes ou viras.
Embora ainda hoje todos os que falam do fado se lembrem da voz de Amália Rodrigues, é importante lembrar que antes dela havia outra fadista de renome internacional e que, hoje, é pouco lembrada, Ercília Costa, nascida 18 anos antes de Amália. Ercília ainda fez aparições no cinema (filmes “Amor de Mãe”, de Carlos Ferreira - 1932; “Amargura”, “Lisboa 1938” e “Madragoa”, 1952, no qual também estrelava a fadista Deolinda Rodrigues.
A fadista Ana Moura, um dos grandes nomes do fado contemporâneo (ao lado de Mísia, Carminho e outras cantoras de sucesso), falando sobre seu último álbum, aproxima o gênero da música africana, sobretudo angolana, lembrando que o próprio Museu do Fado reconhece seu vínculo com a música brasileira e a das colônias africanas do Século XIX. Realça, porém, que o fado contemporâneo distancia-se muito de tais raízes. Vale a pena ver e ouvir o clip da canção "Arraial Triste" para sentir como podem essas raízes africanas enriquecer a musicalidade do fado.
Sem a intenção de concluir o que quer que seja, penso que confinar um gênero musical no espaço e no tempo, negando influências que tenha recebido de outras culturas é algo tão nefasto quanto defender a eugenia.
Obs: Como você descobriu este post? Qual é o seu nome? Escreva para gpurvin@gmail.com pois estou curioso.
GUILHERME PURVIN é escritor. Graduado em Letras e doutor em Direito pela USP. Coordena o coletivo "Laboratório Alfabético" (Oficina Literária e Clube de Leitura).
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