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  • Guilherme Purvin

Henri Salvador, autor de "Dans mon île"

- Guilherme Purvin -


Meu som te cega, careta, quem é você?

Que não sentiu o suingue de Henri Salvador

Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô

Caetano Veloso - Reconvexo


Em minha infância, era ainda intensa a disputa entre os países europeus na colonização cultural do Brasil. Havia, é verdade, um grande espaço para a música inglesa e estadunidense, mas a França e a Itália permaneciam de pé nas paradas de sucesso. Algumas estações de rádio contavam com programas especializados exclusivamente em música italiana (Rita Pavone, Sérgio Endrigo, Bobbi Solo, Pino Donaggio, Gigliola Cinquetti) e, por um bom tempo, eu preferia ouvir Se piangi, se ridi a I wanna hold your hand. Até mesmo música portuguesa podia ser eventualmente ouvida nas rádios, principalmente os fados de Amália Rodrigues.


A dominação praticamente completa do mercado brasileiro da música popular pelos Estados Unidos só ocorreria na década de 1970. A Rede Globo realizava o Festival Internacional da Canção no Maracanãzinho, um pouco aos moldes do Festival de San Remo, trazendo alguns nomes de países periféricos, como a Grécia de Demis Roussos (que interpretou a famosa Velvet Mornings, mais conhecida como Tric-tric), mas a essa altura o cantor precisou interpretar sua canção em inglês.


Isto significa que, ao longo dos últimos 50 anos, o Brasil foi bombardeado quase exclusivamente por canções dos EUA, Inglaterra e por quem se curvasse ao idioma do grande império. Em 1985, numa viagem de meus pais para a Europa, pedi a eles que me trouxessem um LP de cada cantor ou banda do país por onde passassem. Da Inglaterra, eles trouxeram o Tears for Fears, que havia sido lançado simultaneamente no Brasil: nada de novo no front. Da Espanha, veio uma banda chamada Objetivo Birmania, meio ao estilo do nosso Blitz. O melhor veio de Portugal, um compositor de primeiríssima linha chamado Fausto, e o LP "O despertar dos alquimistas". Desde então, acompanho a produção desse grande cantor e compositor, herdeiro de Zeca Afonso, uma espécie de Chico Buarque lusitano.


Com o advento da Internet, em particular do Youtube, do Soundcloud e do Spotify, ficou bem mais simples a pesquisa do que existe na "deep web" da música popular, ou seja, para além da mesmice norte-americana. No momento, estou particularmente interessado na música popular francesa, que comecei a conhecer através de duas amigas de longa data, a Elisa Martins e a Solange Telles. Elisa me apresentou Serge Gainsbourg, Gabriel Yacoub e Jacques Brel. Solange me presenteou nos anos 90 e 2000 com CDs das bandas Noir Désir, Les Negresses Vertes e Rita Mitsouko, dentre outros.


Hoje quero inaugurar uma nova série, divulgando algumas canções, cantores e compositores franceses.


Começo com Henri Salvador, um nome que conheci apenas há algumas semanas, na aula da Aliança Francesa. Tratava-se do clip de uma canção sobre trabalho, de 1965, intitulada "Le travail c'est la santé", que está no clip a seguir:


A letra diz assim:


Le travail c'est la santé / Rien faire c'est la conserver O trabalho é saúde / Não fazer nada é conservá-la

Les prisonniers du boulot / N'font pas de vieux os

Os prisioneiros do emprego / Não envelhecem (*)

Ces gens qui courent au grand galop / En auto, métro ou vélo Essas pessoas que correm a toda velocidade / De carro, metrô ou bicicleta

Vont-ils voir un film rigolo / Mais non, ils vont à leur boulot

Eles vão assistir a um filme engraçado? / Mas não, eles estão indo para o trabalho deles

(refrão)

Ils bossent 11 mois pour les vacances / Et sont crevés quand elles commencent

Eles trabalham 11 meses para as férias / E estão esgotados quando elas começam Un mois plus tard, ils sont costauds / Mais faut reprendre le boulot Um mês depois, eles estão em boa forma / Mas precisam voltar ao trabalho

Allez tous ensemble / (refrão)

Vamos todos juntos / (refrão)

Dire qu'il y a des gens en pagaille / Qui cour' nt sans cesse après le travail, faut être fou Dizer que há pessoas aos montes / Que correm incessantemente atrás do trabalho, é loucura

Moi le travail me court après / Il n'est pas près de m'rattraper

Para mim, o trabalho me persegue / Ele não está perto de me alcançar

Le travail c'est la santé, tu parles (refrão)

O trabalho é saúde, você está falando (refrão)

Maintenant dans le plus petit village / Les gens travaillent comme des sauvages, j'les ai vus Agora, na menor vila / As pessoas trabalham como loucas, eu vi isso

Pour se payer tout le confort / Quand ils ont tout, ben ils sont morts

Para pagar todo o conforto / Quando têm tudo, bem, eles estão mortos

(refrão) Allez, encore une fois bande de fainéants, là

Vamos lá, mais uma vez, bando de preguiçosos, aí

(refrão) Allez, encore un effort

Vamos lá, mais um esforço

(*) Não envelhecem, isto é, morrem cedo...


O francês Henri Salvador nasceu bem pertinho do Brasil, em Caiena, na Guiana Francesa, que faz divisa com o Estado do Amapá, no ano de 1917. Estreou profissionalmente em meados dos anos 1930 e, na condição de guitarrista de jazz, além de talentoso comediante, viria influenciar a música brasileira que nascia no Rio de Janeiro (isto é contestado por Ruy Castro, que afirma ter ocorrido o contrário: a MPB é que o influenciou). Aos 11 anos, mudou-se com seus pais para Paris, onde se apaixonou pelo jazz norte-americano, em especial por Louis Armstrong e pelo guitarrista cigano Django Reinhardt. Estreou aos 16 anos num show com a orquestra de Paul Raiss e, em 1935, começou a tocar com um quarteto de jazz num cabaret popular chamado Jimmy's Bar. Sua carreira artística foi interrompida na Segunda Guerra Mundial por quatro anos. Na volta, foi contratado como comediante na orquestra de Ray Ventura, que realizou uma excursão pela América do Sul, em especial pelo Brasil. O clip acima ilustra bem essa veia cômica do cantor.


Por ocasião de seu falecimento, em 13 de fevereiro de 2008, a Folha publicou um artigo, no qual informa que o grupo de Salvador "fez uma temporada no hotel Copacabana Palace, no Rio, e Salvador decidiu ficar na cidade, onde construiu uma reputação tocando no célebre Cassino da Urca. Após a Segunda Guerra Mundial, o músico voltou à Europa e fez uma célebre dupla com Boris Vian, que seria considerada a introdutora do rock na França, a partir do hit "Rock and Roll Mops". Sua ligação com o Brasil voltou a ser exaltada a partir da gravação de "Dans Mon Île", em 1957. A canção foi várias vezes creditada, por parte da imprensa francesa e pelo próprio Salvador, como inspiradora da criação da bossa nova, pois teria sido após ouvi-la que Tom Jobim teria tido a idéia de desacelerar o "tempo" do samba". (Folha de S.Paulo).


Em 1942, Salvador realizou os primeiros shows solo no Brasil, só retornando à França depois de 1945, quando decidiu iniciar uma carreira solo.


Durante sua permanência no Brasil, Salvador incorporou elementos do samba em sua formação preponderantemente influenciada por Django Reinhardt. A partir de 1947, passa a lançar diversos grandes sucessos, como "Clopin Clopant," "Maladie de l'Amour," e "Ma Doudou." Em 1949, ganha o Grande Prêmio do Disco da Academia Charles Cros, pelos seus grandes sucessos "Parce Que Ça Me Donne du Courage" e "Le Portrait de Tante Caroline." (Fonte: Allmusic)


Por 60 anos, Henri Salvador cantou ao lado de nomes importantes da música internacional e brasileira, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Françoise Hardy, Lisa Ekdahl e Toots Thielemans. (fonte: Rádio Câmara). Ouça aqui os três blocos do programa da Rádio Câmara dedicados a esse grande músico francês: Bloco 1 - Bloco 2 - Bloco 3


Quando, em 1981, Caetano Veloso lançou o álbum "Outras Palavras", eu não procurei me informar a respeito do significado da composição "Dans mon île". Considerei-a uma singela canção francesa à qual Caetano teria dado um certo toque de bossa nova, sem sequer atentar para o nome de seu autor. Hoje fico sabendo que a canção já nasceu com esse balanço carioca. Vai aqui a canção, na voz do seu autor:



O talento deste cantor, guitarrista, compositor e comediante vindo da colônia francesa, abriria as portas para novos cantores e compositores da metrópole. Um dos contemplados foi Benjamin Biolay, expoente da nouvelle chanson, nascido numa cidade próxima a Lyon e que por muito tempo preferiu música norte-americana à francesa. Abria apenas uma exceção: o álbum Histoire de Melody Nelson, de Serge Gainsbourg. Mas foi uma composição escrita em parceria com Keren Ann Zeidel, em 1999, para o disco Chambre Avec Vue, de Henri Salvador, que Biolay se tornaria conhecido. É dessa dupla a suave bossa nova Jardin d'Hiver, romântica e mais burguesa do que "Casa de Campo", do Zé Rodrix & Tavito. A letra diz assim:


Jardin d'hiver


Je voudrais du soleil vert, des dentelles et des théières (Eu queria um sol verde, rendas e chaleiras)

Des photos de bord de mer dans mon jardin d'hiver

(Fotos da beira-mar no meu jardim de inverno)

Je voudrais de la lumière comme en Nouvelle Angleterre (Eu queria a luz como a na Nova Inglaterra)

Je veux changer d'atmosphère dans mon jardin d'hiver

(Quero mudar a atmosfera do meu jardim de inverno)


Ta robe à fleur sous la pluie de novembre (Seu vestido florido na chuva de novembro)

Mes mains qui courent, je n'en peux plus de t'attendre (Minhas mãos correndo, não posso mais esperar por você)

Les années passent qu'il est loin l'âge tendre (Os anos passam e a tenra idade está longe)

Nul ne peut nous entendre

(Ninguém pode nos ouvir)


Je voudrais du Fred Astaire, revoir un Latécoère (Eu gostaria de ver Fred Astaire, ver um Latécoère novamente)

Je voudrais toujours te plaire dans mon jardin d'hiver

(Eu sempre gostaria de te agradar no meu jardim de inverno)

Je veux déjeuner par terre comme au long des golfes clairs (Quero almoçar no chão como ao longo dos golfos claros)

T'embrasser les yeux ouverts dans mon jardin d'hiver

(Beijar você de olhos abertos no meu jardim de inverno)



 

Guilherme Purvin é escritor. Formado em Direito e em Letras pela USP, doutor em Direito Ambiental. Autor dos livros de contos "Virando o Ipiranga" (semifinalista do Prêmio Oceanos de 2022), "Sambas & Polonaises" e "Laboratório de Manipulação". Toda a sua produção literária pode ser adquirida pelo site da Editora Terra Redonda.

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