Guilherme Purvin
Há quarenta anos, no dia 27 de novembro de 1983, a literatura latinoamericana sofria uma trágica perda: uma aeronave da Avianca havia partido de Paris e seguia para Bogotá, com escala em Madri, quando colidiu numa elevação próxima à capital espanhola, provocando a morte de quase 200 passageiros e tripulantes. A bordo encontravam-se alguns nomes ilustres do mundo literário que se dirigiam a um colóquio na Colômbia, dentre eles o ensaísta uruguaio Ángel Rama, a crítica de arte argentina Marta Traba, o romancista mexicano Jorge Ibargüengoitia e um certo escritor hoje esquecido dos debates literários. Seu nome: Manuel Scorza.
É espantoso, mas explicável, que o nome desse poeta e romancista peruano radicado em Paris esteja sendo apagado para as atuais gerações.
Espantoso porque a obra de Manuel Scorza, em especial a pentalogia "Guerra Silenciosa" foi, à época de seu lançamento, um estrondoso sucesso editorial em todo o planeta. O ciclo é formado pelos romances "Redoble por Rancas" (no Brasil, "Bom dia para os defuntos", em Portugal, "Rufam os tambores por Rancas"), "Garabombo, o Invisível", "O cavaleiro insone", "Cantares para Agapito Robles" e "A tumba do Relâmpago". Assim, parece inconcebível que um romancista traduzido para mais de vinte idiomas, conhecidíssimo à época em que também se projetavam os nomes de Gabriel Garcia Márquez, Mário Vargas Llosa e Julio Cortazar, dentre outros, tenha sido ignorado até mesmo neste ano, em que se celebrou os 40 anos de seu desaparecimento.
No entanto, penso que isso seja explicável. Scorza tornou-se um escritor perigosamente incômodo para os tempos atuais do capitalismo de vigilância, ressurgimento da extrema direita e consequente declínio dos valores democráticos. O tema abordado em sua pentalogia são os conflitos sociais e políticos ocorridos no interior do Peru entre os anos de 1950 a 1962, envolvendo a população camponesa e indígena, vítima de esbulhos possessórios, intimidações e assassinatos a mando de latifundiários e ou pela mão do Estado peruano a serviço das multinacionais do setor minerário (representadas pela Cerro de Pasco Copper Corporation, empresa real). Os cinco volumes tratam do mesmo tema e alguns personagens (todos eles realmente existiram) que ressurgem em mais de dois romances.
Não acredito que sejam propriamente literárias as razões que levaram a monumental saga de Scorza a ser apagada nas últimas três décadas. Quando lemos "Bom dia para os defuntos", é praticamente impossível deixar de relacionar a forma como Manuel Scorza registra e denuncia a guerra silenciosa travada há 60 anos, com o propósito expresso de não deixá-la cair na vala do esquecimento, e a forma como os setores ruralista e minerário continuam a agir no Brasil, no Peru, enfim, em toda a América Latina.
A violência dos latifundiários e gigantes da mineração contra a população pobre que aparece nos cinco romances não é fruto da imaginação de Scorza. Trata-se de um minucioso trabalho de documentação jornalística reescrito de forma poética, pois esta foi a forma que ele encontrou para impedir que tudo fosse esquecido.
No romance de Scorza, a grande vilã é a multinacional estadunidense "Cerro de Pasco Copper Corporation", gigante na exploração de cobre e zinco, que desalojou milhares de camponeses de suas terras secularmente comunais, num esbulho possessório sem precedentes, formando um gigantesco latifúndio maior do que algumas nações. Sempre com o braço armado do Estado Peruano em seu auxílio. No rastro da exploração predatória, deixou rios envenenados e sem peixes, terras contaminadas e imprestáveis para pasto. A "cerca", entidade mítica e sem nome que representa a dominação das terras pelo poder econômico é em tudo idêntica à "cerca" que avança no Pantanal Matogrossense e na Amazônia Legal.
Coloco no Chat GPT uma pergunta sobre o que foi o boom latinoamericano das décadas de 1960 e 1970 e peço que sejam relacionados os nomes dos principais escritores peruanos da época. O programa cita Mário Vargas Llosa e José Maria Arguedas. Peço que enumere mais alguns e ele elenca Ciro Alegría, Júlio Ramón Rybeiro e Blanca Varela. Continuo a insistir um sem número de vezes e ele chega a trinta e nove escritores peruanos desse período, omitindo ostensivamente o nome de Manuel Scorza. Procuro então me certificar se os programadores chegaram a incluir no banco de dados referido nome. E obtenho esta resposta:
"Peço desculpas pela omissão de Manuel Scorza na lista de autores citados anteriormente. Foi uma falha minha e agradeço por trazer isso à atenção. A obra de Scorza, especialmente sua série "La guerra silenciosa", é uma parte significativa da literatura peruana e deveria ter sido incluída na lista.
Manuel Scorza foi um autor comprometido com as questões sociais e políticas de seu tempo, e sua contribuição à literatura latino-americana, através de sua série de romances, é relevante para entender a complexidade da história e das lutas das comunidades marginalizadas no Peru. Mais uma vez, peço desculpas pelo descuido e agradeço por apontar isso."
Quem sabe eu esteja aderindo à "teoria da conspiração" mas, sinceramente, não consigo encontrar outra explicação para a recusa de referido programa em divulgar o nome de Manuel Scorza. As empresas manipuladoras de informação e construção de algoritmos parecem ter o firme propósito de apagar os vestígios da história daqueles que há 50 anos já denunciavam as atrocidades perpetradas pelos detentores do capital e pelo poder estatal que aí está para representá-los e reprimir quem ouse buscar seus direitos. E Scorza teve a ousadia de, amparado em documentos verídicos, perpetuar um episódio que hoje seria completamente ignorado pelos historiadores, como já o vinha sendo até o dia em que sua obra tornou-se um sucesso mundial.
Se houvesse, no Brasil, mais pessoas como Scorza, teríamos material para muitos romances objetivando perpetuar a memória das vítimas das Chacinas da Candelária e de Vigário Geral (Rio de Janeiro, 1993), os massacres de Corumbiara (Rondônia, 1995), de Eldorado de Carajás (Pará, 1996), de Felisburgo (Minas Gerais, 2004), ou ainda os "acidentes minerários" de Mariana (Minas Gerais, 2016), Brumadinho (Minas Gerais, 2019) ou a tragédia em curso em Maceió/AL, consequência da irresponsável ação da Brasken, com a conivência da grande imprensa e dos poderes públicos. Brasken que, aliás, foi premiada pelo seu zelo social e ambiental (o tão propalado ESG). A violência capitalista nos países periféricos continua inalterada e, com a ascensão da extrema direita, o que se nota de diferente é que a repressão contra aqueles que a denunciam tem sido muito mais intensa.
Cerro do Pasco Corporation, no Brasil, chamam-se Brasken, Samarco, Cia. Vale. Os fazendeiros dos anos 50 e 60 no Peru são os avós do pessoal representado no Congresso Nacional pela chamada bancada da bíblia, da bala e do boi. E os jornais limenhos dos anos 1970 são a Folha, o Estadão, O Globo.
Quanto ao Juiz Montenegro, com jurisdição na comunidade de Cerro do Pasco, bem, neste caso o melhor é não nominar ninguém. Afinal, a derrota da extrema-direita em 2022 no Brasil ocorreu apenas no âmbito do Poder Executivo. E temos mais dois Poderes que, na prática, estão controlando os rumos da política interna brasileira, inclusive com repressão de quem ouse dar os nomes aos bois.
Cabe à Literatura Brasileira cumprir com mais empenho sua função social, impedindo que a "Cerca" também invada o espaço reservado às Artes.
(*) Texto publicado originalmente na Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares, edição do dia 9/12/2023 - https://www.revista-pub.org/post/09122023
Guilherme Purvin é escritor, graduado em Letras, doutor em Direito pela USP e autor de "Paredes Descascadas" (Terra Redonda, 2023), dentre outros livros de ficção.
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