
Caderno 5
Capitulo 1 - No caminho da Sanfran
Guilherme José Purvin de Figueiredo
Depois de repetir de ano duas vezes seguidas, cheguei ao 3º colegial decidido a levar os estudos a sério. Na verdade, por trás disso havia o episódio do jornalzinho mimeografado “O Lixo”, publicado em novembro de 1975. Coloquei nele uma nota dizendo que Vladimir Herzog havia morrido e isso desencadeou a fúria da diretoria do colégio, que era formada pela nata da extrema-direita: monarquistas e policiais militares admiradores do Golpe de 1964. Para não ser expulso nem levado ao DOI-CODI, meu pai assegurou ao diretor que não me envolveria mais com os maconheiros da Aclimação nem me meteria a escrever jornais estudantis.
Mas agora é que eu queria mesmo virar jornalista. Meus pais assinavam a Folha de São Paulo. Eu adorava as crônicas de Lourenço Diaféria que, em 1976, lançou a coletânea “Um gato na terra do tamborim”. Meio insensível que eu era, não percebia a intensidade do título. Na infância, Roberto Carlos cantava “um dia lá no morro, pobre de mim, queriam minha pele para tamborim”. Quando ouvia “Negro Gato”, porém, pensava apenas num gato preto. Era mais uma música infantil, como “A festa do Bolinha”, com o Trio Esperança. Só entendi a canção muito mais tarde, na voz de Luiz Melodia. No caso do livro do Lourenço Diaféria, a capa era o desenho de um gato com cara de angústia olhando para o alto. Eu tinha dificuldade de entender a gravidade da situação política no Brasil, mas procurava me instruir política, literária e musicalmente, lendo Pasquim, Rolling Stone, Movimento, Versus, Ex-.
Se tudo desse certo, levar a vida entre redações de jornais e a máquina de escrever em casa, elaborando romances e coletâneas de contos. Fiz a transferência da área de Exatas para a de Humanas no 3º ano, onde voltei às aulas de Francês (que havia tido nos tempos do ginásio no Ipiranga), além de Inglês e Latim, Comunicação e Linguística, Literatura Brasileira, História, Geografia e Filosofia. Em meio aos estudos, lia Érico Veríssimo (Incidente em Antares), Antônio Callado (Quarup), Ivan Ângelo (A Festa), José Jorge Veiga (A hora dos ruminantes).
Um dia minha irmã recebeu em casa um amigo da São Francisco, onde ela estudava já desde 1973. Era um rapaz educado, meio franzino. Apesar de sua barbicha meio estilo Lenin, era todo arrumadinho, bem penteado, com cabelo alinhado. Apresentou-se para minha mãe e meu pai. Seu nome era Caio e ele vinha apenas para reiterar um convite, para que minha irmã e seu namorado comparecessem a uma festinha que ia ser realizada à noite no Centro Acadêmico XI de Agosto. É que minha irmã, muito pacata, era totalmente distante das agitações estudantis, limitava-se a ir à aula, passar de ano, namorar. O colega se deu ao trabalho de vir pessoalmente à nossa casa, só para que ela saísse da zona de conforto. Eu, que estava cada vez mais curioso para entender o que se passava no movimento universitário, fiz algumas perguntas ao colega que, ao saber que eu iria prestar vestibular para Jornalismo por conta de minha paixão por Literatura, disse para eu também comparecer à festinha. Então me animei a ir também.
Era uma noite de sexta-feira, dia 6 de agosto de 1976. O jornal estampava na primeira página declaração do líder da maioria na Câmara Federal, uma figura execrável que tinha o mesmo nome de uma figura ilustre dos tempos da Independência, deputado José Bonifácio, afirmando que as cassações iriam continuar, pois o AI-5 “não é enfeite da Constituição”. Esse era o ambiente político daqueles anos, em que uma declaração assim descarada parecia não chocar os leitores e, no máximo, gerava alguns protestos suaves por parte de Ulysses Guimarães.
Minha irmã, embora estivesse casada com um sobrinho de Ulysses, não estava preocupada com José Bonifácio ou com o MDB, muito menos com as eleições para a presidência do Centro Acadêmico. Mas, é claro, votaria em seu amigo Caio, que tão gentilmente, fora à nossa casa só para insistir que fôssemos à festa.
Para mim, aquilo era um cenário totalmente novo. Eu conhecia apenas de passagem a região do Largo São Francisco. Meu pai costumava comprar sementes e mudas de árvores na loja da Dierberguer que ficava instalada na lateral do prédio da Faculdade de Direito, uma rua que só muitos anos mais tarde vim a saber que se chamava Cristóvão Colombo, antes de mudar de nome para Brigadeiro Luiz Antônio. Nunca havia entrado no prédio da faculdade, muito menos no centro acadêmico.
Naquela noite, fiquei hipnotizado pelo ambiente meio gótico, meio clandestino daquele porão, algo que me fez pensar nas aulas de Literatura Brasileira, em Fagundes Varella, Álvares de Azevedo e Castro Alves. E comecei então a pensar melhor nos rumos a tomar. Era verdade que eu queria ser jornalista, mas apenas porque era a única profissão que eu conseguia imaginar relacionada ao trabalho com a escrita. Minha vontade mesmo era de um dia poder dizer que tinha a mesma profissão que pessoas como Dalton Trevisan, José Jorge Veiga, Moacir Scliar, Rubem Fonseca. Como Lourenço Diaféria. E, ao passar por aquela porta de ferro dava acesso às escadas de mármore, comecei a pensar que talvez aquela faculdade, e não a ECA/USP, fosse o melhor caminho para que eu vir a viver como escritor. Naquela noite, conheci um casal de amigos de minha irmã, Márcia Holanda e Zé Roberto. Márcia era uma loirinha de cabelo curto, sempre de braço dado com Zé Roberto, seu namorado. Os dois faziam parte de um grupo de sustentação da candidatura de Caio para o XI de Agosto. Acredito que uma de suas funções era justamente a de trazer o pessoal mais alienado para juntar-se ao Movimento Oposição. Era o caso de minha irmã de meu cunhado. Aliás, isso explicava a visita do Caio à casa de meus pais, ele que até então nunca havia sido mencionado pela minha irmã como amigo dela.
Para mim, que conhecia apenas o pessoal secundarista, apaixonados por rock e com vagos ideais de fraternidade hippie e pé na estrada, conexões de amizade se davam por afinidade de gosto. Não era capaz de imaginar que alguém, deliberadamente, simulasse interesse em se tornar amigo de quem quer que fosse com a intenção de conquistar seu voto em eleições. Em pouco tempo, porém, aprenderia uma palavra nova: “conchavo”. Era algo parecido com uma cantada, só que sem a respeitável justificação do interesse sexual, era uma cantada para que a pessoa fizesse um X no quadrinho do seu candidato. Mas estou sendo simplista. Um conchavo verdadeiro era bem mais do que a conquista de um voto. Era ser levado a participar de seu grupo político, por motivo de convicção ideológica. Se eu havia me sensibilizado com o assassinato de Herzog no colégio, se eu havia sido humilhado e censurado no colégio, obrigado a entregar todos os exemplares do jornal O Lixo, eu teria minhas razões para aceitar o conchavo da prima do Chico Buarque e de seu namorado. Mas isso só viria a acontecer em fevereiro de 1977, quando entrasse na faculdade de Álvares de Azevedo e Fagundes Varella.