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Descendo a Ladeira - Cap. 01

  • Foto do escritor: Guilherme Purvin
    Guilherme Purvin
  • 2 de jun.
  • 18 min de leitura

Atualizado: 3 de jun.

A pedidos, republico aqui o romance "Descendo a Ladeira", mas agora numa nova versão, com mudança da 1ª para a 3ª pessoa e um pouco mais de realismo ecológico. Talvez meu fôlego literário seja muito curto e não consiga trabalhar com enredos de mais de 100 páginas. Deixando isto aqui no meu blog, quem sabe algumas pessoas leiam e achem bacaninha. Tipo Premê. Afinal, o Mário Manga se divertiu com o "Dona Neide e os Infiltrados" e o "Ressucitado". Humor de tiozão que envia spotify da Gianny interpretando Dominique aos 30 colegas da faculdade que reuniu no WhatsApp e que não obtém nenhuma reação. Ruído de mosca. É o que provavelmente vai acontecer nesta postagem mas, enfim, como o bar esperança é o última que fecha, fica a sugestão, se der vontade, escreva dizendo o que você achou: gpurvin@gmail.com.

São Paulo, 2 de junho de 2025

Guilherme José Purvin de Figueiredo

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Capítulo 1 - Infância e Adolescência de Januário Ladeira


que estou escrevendo sobre minha vida como se fosse um escritor contando a história de um estranho, vou tentar disfarçar certos defeitos em minha formação e mostrar somente o lado mais bonito de minha vida. Com o narrador em terceira pessoa, sempre poderei argumentar que isto não é autoficção, mesmo porque, de resto, acho que esse conceito é uma das coisas mais estúpidas do mundo da teoria literária dos últimos 50 anos. Ninguém cria nada. O que fazemos é tentar reproduzir as impressões que certas cenas, certos sonhos, certas mulheres ou certos homens provocaram em nossas vidas. Pode ser a coisa mais sutil e desimportante do mundo. Por exemplo, o primeiro cigarro que você fumou, só para se exibir para a garota por quem você era apaixonado, tudo porque você não conseguia dizer isso a ela porque vocês se conheciam já há tanto tempo, ela estava na jangadinha construída pelo seu irmão, sem falar que depois vocês dois tiveram febre de insolação no dia em que ficaram cutucando o piche que era colocado entre os paralelepípedos para que o solo ficasse totalmente impermeabilizado, facilitando com isso a retenção das águas de chuva que, de outra sorte, penetrariam no solo sem causar inundações. Quem pode dizer se você passou a pautar todas as suas paixões futuras por um gesto como aquele, compartilhar um cigarro com sua amiguinha de aventuras pela rua, só pela ideia de estar tocando com os lábios no mesmo papel onde os lábios dela também estarão tocando. Ou seja, toda ficção é autoficção. Swift, em Viagens de Gulliver, falava de sua própria experiência no novo mundo da literatura que se formava na Inglaterra - era pequeno entre os grandes, era um gigante entre os pequenos. Uma autobiografia tão óbvia que só mesmo um narrador em terceira pessoa conseguiria disfarçar. Assim, lancemos os dados e, quem sabe, seja eu o Lawrence Sterne do Século XXI. Ou, pelo menos, um Walter Ego do Angeli. De qualquer forma, por cautela, antes de publicar as minhas mais doces memórias, vou perguntar pro ChatGPT e pro DeepSeek se meu romance passaria pelo crivo de Antonio Cândido, Davi Arrigucci, Walnice Nogueira Galvão ou Alfredo Bosi. Só presentearei a humanidade se a nota final for superior a sete. Refestelem-se, mas depois não reclamem pelas consequências à sua saúde mental.


Januário Ladeira

Bairro do Ipiranga, 7 de setembro de 2012


Mesopotâmia

Entre o Tamanduateí e o riacho do Ipiranga, há um triângulo de ruas tristes e feias. Hoje, o local é quase desabitado: as poucas residências que resistiram em pé foram transformadas em pensões para os miseráveis que ainda migram para São Paulo pensando em conseguir emprego. Onde antes havia galpões industriais, hoje só restam ruínas, sem valor imobiliário, ignoradas até pelos mais pobres, não obstante haja uma estação de ônibus nas proximidades – o famigerado “fura-fila”, um corredor elevado de ônibus criado na época de Celso Pitta, mal resolvido desde o início, pensado apenas para fazer os coletivos escaparem das enchentes. As casas ali sempre estiveram úmidas, como se lacrimejassem pelas fundações, com reboco que se desfazia feito crosta de ferida antiga. Moravam ali filhos e netos de imigrantes italianos, espanhóis e portugueses analfabetos. Gente de fábrica, de bar, de obra. Operários mal remunerados nas indústrias do ABC. Pedreiros das centenas de edifícios em construção na cidade. Empregados de bares destinados à venda de café, cigarros, pinga e nada mais. Vendedores de enciclopédias a domicílio. Motoristas autônomos de caminhão de transporte de barris – caso do Sr. Paulo Ladeira, pai de Januário. Uma pequena burguesia que sonhava em colocar os filhos na faculdade e que tinha horror de um dia ser atirada para a Favela do Vergueiro.

Aquelas ruas que ficam na confluência dos bairros do Ipiranga, Mooca e Cambuci nunca poderiam ter sido urbanizadas. Eram um charco onde, em outros tempos, algumas famílias plantavam verduras para vender no mercado da Cantareira. No entanto, quando a cidade se expandiu e planejou-se a construção do Parque da Independência, com uma Avenida Dom Pedro I toda arborizada e estritamente residencial, foram também feitos os traçados daquelas ruas que estavam, desde a origem, fadadas à permanente miséria.

Da ilusão urbanística de se transformar aquele bairro numa espécie de Versailles nada mais há senão velhas fotos em preto e branco postadas no Facebook por saudosistas de uma São Paulo em tempos de expansão da indústria automobilística. São imagens baças, onde os velhos enxergam grandezas que nunca existiram, fantasias de uma São Paulo que prometia ser moderna, mas nasceu torta, violenta, impiedosa. E inundada.

 


Armadores

No verão, quando chovia, aquele triângulo inundava. Aliás, nem era preciso chover. Bastava que a água viesse de Mauá e São Caetano do Sul para tudo virar uma Veneza venenosa. Ignorantes dos riscos trazidos por aquelas águas, os meninos consideravam tudo um grande pretexto para diversão e alegria. De um momento para o outro, aquele bairro agora era uma praia! César (irmão de Januário), e seus amigos Rui, Victor e Cebola construíram uma jangada com pedaços de caixote encontrados no depósito de lixo. Criaram a primeira empresa de transporte fluvial do Ipiranga.

Talvez, naqueles tempos, a água das enchentes ainda não fosse oleosa, mas era evidente o risco de contraírem tifo por causa dos ratos. Mas eles ignoravam tudo isso em nome da aventura infantil. Afinal, até mesmo em cidades bombardeadas pela guerra as crianças encontram pretexto para brincar de esconde-esconde entre os escombros. A jangada que o irmão de Januário e seus amigos haviam construído tinha o tamanho do estrado de um berço de criança e o projeto inicial era de servir aos garotos como meio de transporte corrente abaixo, pela Avenida Teresa Cristina. No entanto, a jangada mal suportava o peso de um só deles. Por isso, a empresa passou a atender somente crianças com menos de 30 quilos. A tábua era conduzida pelos quatro pequenos empreendedores, um em cada extremidade da jangada. Cobravam ingresso para os passeios e, com o dinheiro arrecadado, compravam figurinhas ou picles de salsicha, cenoura e cebolinha em conserva.

 


Cebola

E então aconteceu uma tragédia. Quando tentava atravessar a avenida inundada, Cebola pisou em falso na pinguela de madeira, quebrou o pé e foi levado pelas águas. Seu corpo foi encontrado muito além da foz do córrego. Houve missa na Igreja Rainha dos Apóstolos. Seu caixão tinha menos de um metro e meio e era branco. Diferente das outras mulheres da vizinhança, a mãe do Cebola não chorava. Era como se não estivesse ali, como se fosse uma estátua. Ao final da missa, respondia aos pêsames com a mesma frase: “Dez anos. Ele ia fazer dez anos na semana que vem”. Januário conseguiu fugir da fila, não por covardia, mas por puro pavor do que sentia imaginando-se no lugar do amigo naquele caixão pequeno demais.

No ano seguinte, foi construída uma ponte de cimento, muito mais segura. Foi assim que, na temporada de enchente, Januário ingressou na equipe de seu irmão. O número de “clientes”, no entanto, decresceu por conta da tragédia. A única tripulante passou a ser Joaninha, filha do padeiro Melquíades, que sempre trazia suspiros e palitinhos de picles de cenoura, nabo e couve-flor para os pequenos empresários do ramo da navegação fluvial.

 


Valores cívicos

César e Januário estudavam no Grupo Escolar Murtinho Nobre, no horário da manhã. Não fizeram muitos amigos na escola, apenas o João Maritain e os irmãos Maria e Shazan, garotos da turma noturna, suficientemente pobres para precisarem trabalhar durante o dia.

O professor de História de Januário chamava-se Luis Carlos. Lecionava no grupo e também em colégios particulares. Com um ar arrogante, explicava aos garotos da escola pública que quem mora no Ipiranga tem o dever de saber da importância daquele riacho que engoliu o Cebola, aquele acidente geográfico hoje torpemente renomeado córrego. Afinal, foi às suas margens que Dom Pedro de Alcântara deu o grito da Independência do Brasil.

— Perguntem aos moradores de todos os outros bairros de São Paulo (e podem incluir Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e outras cidadezinhas que os livros fingem ser importantes apenas por cortesia federal): alguém tem um bairro que foi berço de um evento histórico desta relevância? Se houver, decerto o morador desse bairro há de entender o motivo do orgulho de quem nasce às margens plácidas. Independência Nacional.

O Sr. Paulo Ladeira, que nascera em uma “cidadezinha irrelevante” chamada Recife, irritou-se com a história trazida pelos filhos na hora do jantar e perguntou que independência era aquela, o Brasil falava a língua do colonizador português e obedecia às ordens do colonizador do colonizador, ou seja, os anglo-americanos.

— Digam a esse professor Luís Carlos que independência só existirá quando o Brasil adotar o tupi como língua oficial e deixar de atender aos comandos de Washington, Londres, Roma, Madri, Paris. Brasil independente. E diga também que irrelevante é a cultura dele, que ignora a história de Maurício de Nassau.

Claro que nem Januário nem César diriam nada ao professor. Não queriam ser expulsos do grupo escolar. Além disso, nenhum dos dois estava preocupado com as relações do Brasil com Lisboa ou Washington. César gostava de ouvir a Elis Regina e o Jair Rodrigues e de falar do Santos de Pelé, Januário preferia Neil Sedaka e os Platters, Rita Pavone e Trini Lopez. Não suportava os discos que os pais ouviam na vitrola, tangos de Vicente Celestino, boleros de Cauby Peixoto e fados de Hebe Camargo. A formação política dos dois irmãos se deu pela música, para o bem e para o mal. Em sua ignorância de história e política, própria da idade, Januário pensava nos nomes de Dom Pedro, Teresa Cristina, Paulo Bregaro e Ouvidor Portugal como meras referências topográficas, tão inexplicáveis como Rua Guaxinduva ou Largo do Cambuci, onde não havia nenhuma árvore.

 


Pirâmide da Independência

Eram as ruas ao redor do museu. Simplesmente museu, porque ninguém iria confundi-lo com o outro, na avenida Nazareth, onde o único ser vivo era um esquilo enjaulado na entrada. Pra esse, todos davam um nome específico: Museu dos Bichos, isto é, o prédio dos animais empalhados. Agora, museu apenas, quando falavam dele nem mesmo se referiam ao Museu de História da USP, mas ao monumento da Independência, um conjunto arquitetônico bem mais abaixo, com aquelas escadarias de mármore branco que nos faziam sonhar com pirâmides do Egito protegidas por leões alados de ferro, nos quais subíamos para cavalgar como se fossem cavalos, a uma distância razoável do solo.

E era lá, entre escadarias faraônicas e leões de ferro fundido, que a liberdade dos garotos do triângulo se realizava: numa queda de dois metros que partiu a cabeça do Victor e modificou totalmente o rumo de sua vida. Justo o Victor, que era mais velho e mais forte do que o Cebola e o único loiro de olhos azuis num raio de um quilômetro. Família diferenciada, morador da Rua Itapari, no outro lado do museu, com DKW Vemag na porta de casa, mais duas irmãs, todos em colégio particular. Victor, porém, sobreviveu, embora com sequelas. Passou a caminhar meio de lado, com um estranho sorriso permanente que nada tinha a ver com seu estado de espírito e nunca mais conseguiu aprovação na escola. Na quarta reprovação, seria jubilado, pois naquele tempo não havia essa ideia de direitos da pessoa com deficiência, de escolas especializadas e de política de cotas. Jubilação era expulsão do Cardeal Motta, colégio jesuíta sediado a duzentos metros do cavalo do imperador, a julgar pela posição da casa do Grito no quadro de Benedito Calixto. Expulsão por incapacidade mental, assinada pela diretora Grace Micaela. A temível Dona Micaela, que Januário viria em breve conhecer, quando o Sr. Paulo Ladeira ficou rico a ponto de poder pagar matrícula e mensalidades escolares. Tudo para que os filhos não herdassem a profissão de motoristas de caminhão.  

 


Afundamento

O riacho do Ipiranga era, de certa forma, a linha divisória da miséria da população daquele bairro. Quando a família Ladeira foi morar na Rua Hipólito Soares, as casas tinham altura normal, cerca de 2m20 do chão ao teto. Aí chegou o progresso. O nível da rua subiu um metro, os troncos dos salgueiros, ipês-roxos, aroeiras e figueiras que margeavam o Ipiranga na Avenida Teresa Cristina viraram carvão na padaria do Melquíades e todos passaram a ter que entrar no sobrado descendo uma escadinha. As margens plácidas foram cimentadas.

À direita encontra-se a parte mais insalubre e degradada do bairro. Seus moradores, porém, orgulhavam-se pois não eram favelados. Quer dizer, sias casas eram de tijolos, tinham alicerces, portas, janelas, reboque e pintura. Pagavam a conta de água e de luz, imposto predial, guarda-noturno. Por isso, Januário nunca se conformaria com os sabichões da USP que hoje chamam o Baixo Ipiranga de área historicamente favelizada. O que eles sabem daqueles tempos? Pois se eram todos batizados na igreja católica, não tinham costume de batucar nem de erguer paredes com caixotes de madeira e forrar o teto com chapas de zinco! Era o que a dona Lívia sempre repetia, quando Januário ou César comentavam alguma coisa que tinham ouvido dos meninos metidos a besta do Cardeal Motta ou no Nossa Senhora da Glória.

Do lado esquerdo, moravam os tais metidos a besta. Eram médicos, dentistas, engenheiros, donos de pastifício, diretores de clubes como o Juventus, o Atlético Ypiranga e o recém-fundado Hispano. Quase todos já haviam comprado seu próprio carro. Aquela área só ficava mais feia a partir da Rua Lima Barreto, onde funcionava a fábrica da Coca-Cola. No início do dia, na hora do almoço e no fim da tarde os empregados se espalhavam para beber pinga nos botecos. Enfim, os moradores do lado esquerdo do riacho não se sentiam à vontade com o padrão daquela rua que, ademais, não homenageava nenhum herói da Guerra do Paraguai, da Inconfidência Mineira ou da Independência do Brasil. Lima Barreto, quem era esse sujeito? Provavelmente algum bêbado, como os operários que lotavam o Bar do Almeidinha. Assim, falando com toda sinceridade, nem a família de Januário nem a de Joaninha invejava o povo da Rua General Eugênio de Melo ou da Ricardo Daunt. Sempre lhes pareceram imitações baratas das famílias dos seriados Papai Sabe Tudo, Feiticeira e Os Waltons.

Enfim, nossas ruas foram planejadas urbanisticamente. Os efluentes do córrego, como sempre aconteceu, desaguavam no Tamanduateí e este, no Tietê, o Tietê no Paraná, até chegarem a Buenos Aires. Não tinham dinheiro para conhecer os vizinhos portenhos, mas seu cocô chegava boiando às margens da terra de Carlos Gardel.

 


Macarrão com vôngoles

Mas voltemos à reforma das ruas da margem direita. Nem sempre a família Ledeira foi cabisbaixa. Os moradores daquele triângulo caminhavam com a espinha ereta. Certa vez, um dos prefeitos nomeados pela ditadura resolveu elevar em mais de um metro o nível das ruas como forma de acabar com o problema das inundações. A ideia era bastante simples: com as ruas mais altas, a água não atingiria as casas e os carros poderiam circular em dias de chuva. No entanto, haviam se esquecido da lei dos vasos comunicantes. As casas agora estavam abaixo do nível das ruas e calçadas. Para quem passava por ali, a impressão que dava é que as residências haviam sido erguidas sobre areia movediça e agora afundavam. Como fazer com que a água dos canos de esgoto que correm nas ruas não revertessem para os ralos das casas?

Agora todos entravam nas casas por escadinhas de madeira, já que nenhuma casa tinha quintal na frente, todas as portas davam para a calçada. E, como se isso já não fosse humilhante, mal iniciou-se o verão, entrou em vigor a implacável lei. As águas que antes cobriam a rua entraram nas casas e não foram embora pelos ralos. No dia seguinte, o sol brilhando, as calçadas sequinhas e todos os moradores num trabalho insano de jogar a água na rua com baldes.

Em dois dias, as casas estavam infestadas de caramujos, satisfeitos com o ambiente úmido e pegajoso do andar térreo dos sobrados. Januário se divertia em caçar os bichos, com a ajuda de Joaninha. Chegaram a abarrotar uma panela inteira de macarronada e um balde. Joaninha perguntou qual era a diferença entre caramujo e caracol. Januário explicou que caracóis eram redondos, com meleca esbranquiçada e caramujos eram aqueles, com formato de corneta e meleca escura. A coleta ficou todinha na casa de Januário. Decidiram fazer uma surpresa para a família, uma macarronada ao vôngole. Joaninha sabia preparar molho: bastava abrir a lata de massa de tomate. O menino cozinhou os caramujos, explicando a Joaninha:

— Se a gente deixar bem cozido na água fervente, vai matar todos os micróbios.

À noite, Joaninha chegou com o Melquíades, seu pai, jantar com a família de Januário. Paulo e Melquíades fumavam desbragadamente e bebiam cerveja. As carteiras de Continental e de LS, esvaziavam-se com a mesma velocidade das garrafas. Refestelaram-se com aquele espaguete ao vôngole de enchente. Esbrufuludos, devoraram a comida, sem se incomodar com a crocância das carapaças que até dava um certo charme à refeição. De resto, o tablete de caldo de carne no molho e o queijo ralado eliminavam a possibilidade de se descobrir o que estava sendo ingerido. No dia seguinte, acordaram com a pele cheia de bolinhas vermelhas e forte diarreia. Foram todos para o médico, que os proibiu de comer aquilo e receitou um remédio antiparasitário.

Depois apareceram os especialistas do DAE - Departamento de Águas e Esgoto, que desinfetaram e exterminaram os moluscos invasores. Januário ficou impressionado com a chegada daqueles heróis, especialistas, vestidos todos de azul e com sapatos de borracha. Ninguém mais comeu macarronada com caramujos na Rua Hipólito Soares, nem na Cipriano Barata, na Paulo Barbosa ou qualquer outra rua daquele triângulo. Essa recordação de infância marcaria o seu futuro profissional: lutar contra as ameaças biológicas na vida do povo de São Paulo.

Para solucionar o problema dos vasos comunicantes, foram chamados os engenheiros da prefeitura que idealizaram o projeto de elevação da rua. Todos foram unânimes: bastava que os moradores da região se adequassem à nova realidade topográfica e geofísica, elevando o chão das casas até o nível da rua, já que não havia como elevar os próprios alicerces e paredes à altura do asfalto.

Isso explica a vizinhança cabisbaixa. Não era por timidez ou humildade. Os moradores do baixo Ipiranga à margem direita do riacho, passaram chamar esta região de Vila dos Duendes. Nada sabiam de fadas, gnomos ou leprechauns. Por isso, pensavam que os metidos-à-besta chamavam o triângulo de “Vila dos Doentes”. Por um tempo, tiveram raiva e vergonha dessa situação. A mãe de Januário, percebendo que o filho estava atormentado, disse-lhe:

— Deixa estar, meu filho. Nossas casas são baixinhas, mas agora a água das inundações vai alcançar o outro lado do córrego. Agora seremos todos iguais.

E não é que ela estava certa? Na primeira chuvarada, a enchente chegou até as casas da Rua Jorge Moreira, que era mais alta. Como um castigo divino pelas piadas sobre as casas rebaixadas e os caramujos, soube-se de uma família residente do outro lado do córrego, que também contraiu a doença do vôngole de enchente. Januário podia agora jogar na cara dos meninos do lado esquerdo do riacho: quem eram agora os doentes? Mas não jogou. Não era bem isso o que eu queria.

 


Iniciação

A afeição entre Januário e Joaninha começou um pouco mais tarde, na época em que resolveram colecionar piche. Quando o sol era escaldante, apanhavam palitos de sorvete e cavoucavam as beiradas dos paralelepípedos da Rua Jorge Moreira, do outro lado do riacho. Como o piche era pouco, não conseguiam nunca o suficiente para esculpir um boneco. Mesmo assim, ficavam horas a fio entretidos naquela garimpagem, atordoados pelo calor do sol.

Veio então a fase da coleção de carteiras de cigarros que eram atiradas na calçada do ponto de ônibus da Avenida Dom Pedro I. Joaninha e Januário estavam agachados, abrindo um envelope amarelo de Beverly praticamente intacto que havia caído do bolso de um desatento que acabara de subir no ônibus para a Praça Clóvis. Descolavam as beiradas da carteira para retirar somente o invólucro, derrubando os cigarros inteiros no chão. Então chegou um moleque meio atarracado e cheio de espinhas purulentas no rosto, vestindo uma camiseta esburacada do Palmeiras.

— Cês me descolam um cigarro?

Januário se assustou com a pergunta. Não estava nem um pouco interessado em cigarros, queria só a embalagem. Joaninha apanhou os cigarros e deu-os todos ao palmeirense.

— Pode ficar. A gente só quer os maços vazios.

O rapaz acendeu um cigarro, deu uma tragada e se apresentou.

— Prazer, eu sou o Benê. Cês moram aqui no bairro?

— Eu moro na Jorge Moreira. O Januário mora na Hipólito Soares.

— E eu, na Lavapés, sabem onde é? Pertinho da Rua Espírita, onde tem a malhação do Judas.

Eles sabiam sim, eram sobrados que contornavam a rua diante da linha do bonde. Januário teve pena. Esse Benê sim é que era pobres, diferente das famílias do triângulo. Quando ia de bonde para a Praça da Sé com a mãe, sempre olhava com compaixão para aquelas casas em ruínas e sentia um privilegiado por ter uma casa só para si e para seus pais.

— Você é palmeirense? — perguntou Joaninha.

— Boa pergunta. É por causa da camisa, né? E você torce pra quem?

— Palmeiras também.

— Também, não. Eu não disse que sou palmeirense. Uso essa camisa porque ganhei, uso porque quero.

— Você é palmeirense, Joaninha? — Januário perguntou, surpreso. — Nunca imaginei!

— Pelo visto, você não é — disse o Benê. — Deve ser pó de arroz, acertei?

Januário não respondeu, a pergunta era grosseira.

— A camiseta tem uns buraquinhos, mas cada um deles conta uma história. Uma enganchada numa cerca de arame farpado, a brasa de um cigarro... É a minha vida! Agora, vocês aqui, colecionando lixo, é uma piada! Eu pensei que vocês estavam procurando uma ponta.

— O que é uma ponta? — perguntou Joaninha.

— Ponta de cigarro. Vocês nunca fumaram?

Sim. Não. Seus pulmões estavam impregnados da fumaça do Continental e do LS consumidos pelos seus pais. Mas nunca tiveram coragem de colocar um cigarro entre os lábios. Benê acendeu um, tragou fundo, soltou a fumaça com gosto e estendeu a mão a Joaninha, que fez não com a cabeça, envergonhada. Januário não hesitou, era preciso mostrar que já era um homem. Olhou à sua volta e não viu nenhum adulto por perto, nenhum que conhecesse seus pais. Então levou o cigarro à boca e tentou imitar a cena do jantar fatídico, seu pai e o pai de Joaninha exalando aquela fumaça ondulante pela mesa, sem se preocuparem com as crianças à volta. Por que não? Fechou os olhos e sugou a fumaça. Não tossiu, mas sentiu-se zonzo. Ia devolver o cigarro ao novo amigo, mas Joaninha antecipou-se e também o levou à boca.

— Adultos se conhecem pelo sobrenome. Você é Benê do quê?

— Benedito Montana.

— Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Joana Belafonte e meu amigo é o Januário Ladeira. 

O cigarro acabou e agora a preocupação maior dos dois era disfarçar o cheiro de fumaça. Seus corações estavam acelerados como se houvessem se beijado pela primeira vez.

 


RUPTURA

Longe da influência de César, que parecia enveredar definitivamente pela MPB e querer ingressar, quem sabe, na Poli ou na Mauá para tornar-se um engenheiro mecânico muito bem sucedido na indústria automobilística do ABC, Januário optou pela anarquia proposta por Benedito Montana. Joaninha o acompanhou decisivamente, nunca aceitando a pecha de menina mais novinha e ingênua que se deixou seduzir por marginais maconheiros dos cortiços da Lavapés. Até mesmo porque Benê deixou naquela época a casa onde morava com a avó materna e se mudou para a Vila Carioca, do outro lado do Tamanduateí.

Cabe aqui realçar um dado importante: neste ponto estamos deixando o território do Ipiranga e ingressando numa região ainda além da Ilha do Sapo, passando pelos galpões da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí ao longo da Avenida Presidente Wilson e ingressando na Avenida Vemag, numa vila chamada Carioca, onde os moradores exalavam dia e noite os vapores de solventes da Shell derramados no solo por descuido perfeitamente justificável.   Afinal, naquele tempo não existia essa história de ecologia e meio ambiente e aquele cheirinho era bom, era cheirinho de progresso do país, era orgulho de Januário ver seu pai no caminhão descendo a Anchieta ou a Estrada Velha de Santos rumo a Cubatão.

Afinal, quem estaria em melhor situação? Januário, ameaçado por fatores biológicos como os caramujos, ou Benedito Montana, respirando gases cancerígenos aos 14 anos de idade? A mãe de Januário não deixava margem de dúvida:

— Deus me livre ir morar lá na Vila Carioca. Tenho um primo que mora lá, é açougueiro e toca sanfona. Já viu o nível, né?

Benedito, curiosamente, parecia não compreender essa distância abissal entre morador do Baixo Ipiranga e morador da Vila Carioca. Ou, se sabia, disfarçava bem nas longas conversas com Januário e Joaninha a respeito de Led Zeppelin, Gentle Giant, Pink Floyd, Rolling Stones, Bob Dylan, The Who, Yes, Black Sabbath e Joe Cocker. Joaninha um dia veio com esta informação:

— Mas tem também as brasileiras. Tem o Som Nosso, Arnaldo & Patrulha do Espaço, Terreno Baldio, Tutti-Frutti, Terreno Baldio, Tony Osanah, A Chave Universal, O Terço e o trio Sá, Rodrix & Guarabyra.

— A gente podia fazer um evento internacional. Rock na Vila Carioca. Será que a gente consegue trazer eles? Eu consigo um palco de madeira na Vemag ou na Shell. Aí só vai faltar microfone e caixa acústica!

A coisa, porém, não deu muito certo, os três amigos pesquisaram e entenderam que os grupos estrangeiros queriam cobrar para virem tocar aqui. Benê declarou:

— Pagar vai contra toda a filosofia da coisa! O rock só é rock se for antissistema, não faz o menor sentido querer faturar em cima de música como capitalistas!

Januário arriscou:

— Será que a canção do Pink Floyd não ensinou nada a eles? Money, get away!

Quando saiu no jornal que aquelas bandas brasileiras iam se reunir num outro festival, lá em Iacanga, região de Bauru, Benedito Montana levantou a suspeita de que um deles havia vendido a ideia do Rock in Vila Carioca para aquele pessoal. Isso foi por volta de 1974, a julgar pelo comentário de nosso herói.

Aí então o evento da Vila Carioca foi redimensionado e acabou sendo realizado ao lado do depósito de lixo industrial da Shell, numa área que costumava ser usada como campo de futebol de várzea e que contava com um tablado que poderia fazer as vezes de palco. Ensaiaram algumas vezes ali: Januário no violão e Benedito na gaita. Joaninha preferiu prestar apoio logístico. Afinal, toda banda que se preze precisa ter uma engenheira de som, empresária, assessora de imprensa — e estas atividades Joaninha saberia realizar muito melhor do que, digamos, tocar flauta doce ou agitar um chocalho de latinhas de cerveja com arroz.

Nascia então a Banda La Bemol, nome sugerido pela empresária, reunindo o La de Ladeira com o Mo de Montana. E o L?

— L de Lisérgico — e Benedito Montana deu um risinho para os amigos, que se entreolharam ainda sem entender muito bem.

— Boa ideia! — disse Januário, ainda sem saber exatamente o significado do mundo dos supositórios veterinários gelatinosos à base de cresol e que têm propriedades antissépticas, bactericidas e cáusticas no ânus do animal e, no cérebro de adolescentes, vertigem, depressão e desejo de morte. Isso para não falar dos efeitos carcinogênicos, mas esses só os preocupariam aos 28 anos de idade.  

Assim nasceu o Rock in Vila Carioca, com a presença da banda Lá Bemol e do cantor Giacomo Salemo, cover de grandes cantores italianos e norte-americanos e de nome artístico Bobbio Daylan. Depois daquela apresentação, para um público de oito colegas de Benê apreciadores do cresol. E nessa mesma noite ocorreu o rompimento da amizade. Benedito Montana deu um desfalque, levando toda a grana que haviam arrecadado e que pagaria o jantar prometido ao cantor convidado.

 


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