- Guilherme Purvin
O pianista da Sibéria 2
- Guilherme Purvin -
Releia o Capítulo 1 - Vladivostok
Capítulo 2 – LULLY E A LÂMPADA ILYICH
Guilherme Maria nasceu no dia 8 de abril de 1893 na improvável cidade chinesa de Shangai. Seu pai, Henrique Caetano Victor Brandão de Figueiredo era natural de Macau, possessão portuguesa em território chinês. Falecera antes que o filho completasse três anos de idade, em 4 de dezembro de 1895, naquela mesma cidade de Shangai.
O filho soube por sua mãe e suas tias que seu avô paterno, Henrique Caetano de Figueiredo, tinha sido médico em Goa, onde participara da criação do ensino da medicina na possessão portuguesa. A viúva Eufrásia Alves, rodeada pelos filhos, cunhadas e irmãos, recontava em inglês a saga da família do marido:
— Na época em que meu sogro morava na Índia, quem habilitava alguém a exercer a atividade médica era o físico-mor. As aulas de medicina e cirurgia eram ministradas no próprio hospital. Não havia até então necessidade de formação escolar. O Sr. Henrique Caetano, avô paterno de vocês, participou da fundação da Escola Médica de Goa, em 1842. Ele foi médico do rei Dom Fernando II e, depois, de Dom Pedro V. Foi só na época de Dom Luís I que ele se mudou para Macau. Aí nasceu meu marido, que Deus o tenha.

Histórias da família, portugueses migrando de uma possessão para outra em busca de fortuna povoavam a imaginação do pequeno Guilherme Maria, que se pôs a estudar a história dos reis. Queria ter sido amigo deles, mas sua família foi, no máximo, amiga dos amigos dos reis.
Dom Fernando II, marido de Dona Maria II, na verdade Ferdinand August Franz Anton von Sachsen-Coburg und Gotha, era um amante das artes e pouco interesse tinha em política. Seu filho mais velho Pedro, sucessor da coroa, havia nascido em 1837 e, quando da morte da Rainha Maria II, ainda era criança e não podia ainda assumir a coroa senão ao completar os 16 anos. Durante esse período, 1853 a 1855, a contragosto Fernando II atuou como regente do reino, em nome do primogênito. Dom Pedro V, de alcunha “o Esperançoso”, foi Rei de Portugal e Algarves até a sua morte prematura, em 11 de novembro de 1861, com apenas 24 anos. Seu irmão Luís sucedeu-o no trono. Dom Luís I, “o Popular”, reinou até 19 de outubro de 1889, data de seu falecimento.
A mudança da família Figueiredo para Macau ocorreu durante o reinado de Luís I. Quando o avô de Guilherme Maria embarcou com todas as malas e baús no navio que o levaria com Ana Teresa, sua esposa, das Índias para a China, a família já não esperava uma carreira sólida sob o manto da coroa portuguesa. A mudança de Goa para Macau era uma tentativa de aproximação dos polos comerciais mais vigorosos da Ásia, especialmente Hong Kong e Shangai. A família obviamente era grata pela nacionalidade: na condição de portugueses, podiam viajar por todos os continentes – Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Timor-Leste, Goa, Macau e, por que não, também o Brasil, que havia declarado sua independência do Reino em 1822, mas, na prática, era ainda um território povoado por portugueses viajantes como eles. Não fossem os passaportes reais e o critério jus sanguinis de definição da nacionalidade (portugueses são aqueles cujos pais são também portugueses), seus descendentes estariam fadados a ser indianos. E, quem sabe, Guilherme Maria seria um médico, como o avô. Só que um médico pela metade, um médico descumpridor do juramento de Hipócrates, que por força da tradição cultural, rejeitaria atender um doente que pertencesse a uma casta inferior.
Guilherme Maria pensava em seu avô médico, pensava no pai cuja imagem era tão tênue em sua memória de criança. E pensava sobretudo nos vivos, em sua mãe, D. Eufrásia Alves, todos os seus irmãos, tias e empregados, pensava em seu futuro, ele que era um órfão, cidadão português morando China. Não passavam dificuldades financeiras, era verdade, mas até quando? A família Figueiredo não podia mais esperar nada da Coroa Portuguesa.
Era preciso reinventar a vida. A língua portuguesa era útil em determinadas situações, principalmente para abrir fronteiras continentais. Mas só ela não bastava: não havia um só empreendimento de sucesso conduzido por portugueses. As glórias de Portugal eram apenas lembranças registradas na poesia de Camões. Para sobreviver, Guilherme Maria precisaria aprender o que as pessoas à sua volta falavam. A família, por força das circunstâncias, adotara o idioma inglês — sua primeira língua. O nome de batismo de cada membro da família não era mais lembrado. Sua irmã Maria Emília era Emmy. Sua irmã Guilhermina era Guilly. E ele, Guilherme Maria, era o Lully.
Mas Lully era inteligente e extremamente curioso: queria entender o que falavam os seus coleguinhas nas ruas de Shangai, queria compreender a conversa das amas que ajudavam Dona Eufrásia na difícil tarefa de cuidar de uma dúzia de filhos... E, à medida em que crescia, a curiosidade para entender as conversas dos comerciantes do grande porto de Shangai e da possessão britânica de Hong Kong crescia em igual medida. Ao ser contratado para trabalhar como Engenheiro Eletrotécnico da empresa alemã Siemens, o pequeno Lully, agora Engº Guilherme Maria Alves de Figueiredo, dominava perfeitamente o Português, o Inglês, o Chinês, o Russo, o Alemão, o Francês, o Italiano e o Espanhol. Por sua esposa Wilhelmine, viria de quebra aprender o Letão.
A Siemens, ao contratá-lo, havia de fato levado em conta as vantagens de ter um homem de confiança, com um biótipo “mais ou menos” oriental, mas não era em qualquer lugar que se encontrava um técnico competente e poliglota como ele que, ao contrário do rei Dom Fernando II, também se interessava por política e economia.
Lully prestava muita atenção no que ocorria na Rússia, naqueles anos turbulentos de revolução bolchevique. Para cristãos ou judeus que haviam migrado para Rússia em busca de sobrevivência, a vida sofrera mudanças radicais. A queda de Czar Nicolau II, um governante totalmente afável para com as imposições das empresas estrangeiras, seguida do medíocre período de governo Kerenski, alterava totalmente o quadro esperado.
Logo nas primeiras semanas após outubro de 1917, Lenin havia publicado decretos estatizando as terras, o comércio estrangeiro, os bancos e praticamente todas as indústrias que empregassem mais do que cinco trabalhadores. Os camponeses agora administravam as propriedades rurais antes pertencentes à aristocracia. As terras haviam sido divididas em pequenas partes. No décimo congresso do Partido Comunista, em março de 1921, Lenin sustentou que a ideia de implantação imediata e radical do projeto comunista colocaria em risco a sobrevivência do novo regime. Convenceu, assim, o partido a adotar uma solução conciliatória temporária com o capitalismo, aprovando um programa chamado NEP (Nova Política Econômica). Os homens da NEP — operadores privados independentes — tornaram-se figuras facilmente encontráveis nos círculos da economia.
Para estrangeiros empregados em empresas cuja presença estava sendo temporariamente tolerada na nova realidade política e econômica, em razão de sua essencialidade, a sobrevivência no território russo estava assegurada por mais algum tempo. Era o caso de sua bela secretária de olhos azuis, a letã Wilhelmine Purvin. Lully, além de poliglota e engenheiro competente, tinha uma especial predileção por mulheres. Não suportava crianças e apenas tolerava os homens, com quem conversava, fumava e bebia whisky. Seu maior prazer era conversar com mulheres bonitas e inteligentes. A jovem secretária que a Siemens contratara para ser sua secretária, era as duas coisas. E, ainda por cima, era carinhosa e tinha um humor finíssimo – diziam que característica herdadas da família Purvin. A aproximação foi inevitável.
As empresas sueca e alemã eram pontas de lança na tarefa de modernizar tecnologicamente a mais vasta nação do planeta. A Ericsson já havia instalado no Kremlin uma impressionante central telefônica, formada por nada menos do que vinte telefones exclusivos, do novo tipo “Dachshund”, todo decorado com ouro e ébano.

A Siemens prosseguia em seu projeto contratado pelo governo russo, de iluminação das cidades do país com seu moderno sistema de iluminação com lâmpadas de bulbo. O grande trunfo da gigante alemã da área da eletrotécnica estava no fato de haver adquirido a patente da invenção de Thomas Alva Edison no ano de 1883: Moscou e São Petersburgo.
Guilherme Henrique Purvin de Figueiredo nasceria no dia 23 de abril de 1923 na Sibéria por um simples motivo: seus pais estavam em Vladivostok, trabalhando para que o povo soviético da cidade mais oriental da Rússia tivesse suas ruas iluminadas pelas “lâmpadas de Ilyich”. Esse era o nome dado à lâmpada de bulbo, лампочка Ильича, em homenagem ao grande líder da revolução, Vladimir Ilyich Lenin, evidenciando a relevância dada pelo novo governo comunista à geração e distribuição de energia elétrica como símbolo de uma nova sociedade.
São Paulo, 8 de março de 2019