- Guilherme Purvin
ENTRE RIOS E CRIANÇAS
Atualizado: 4 de nov. de 2018
Guilherme Purvin
Aros de aço sustentavam as lentes de meus óculos
eram círculos, eram rodas, órbitas lunares em torno da Terra em torno do Sol
numa ciranda. Era Nemesis.
Aproximavam-se sob esse enorme caixote metálico
a levar mulheres mais felizes e homens sisudos
e os olhos de espanto de meu pai na cama pedia que eu fizesse algo
que eu levasse comigo a impotência a incapacidade
a impossibilidade de nada mais senão
afastar-me lentamente
tateando as paredes das ruas.
As pupilas dilatadas, enquanto chegava o segundo vagão,
meu pai, as águas do Mogi Mirim onde eu nadava até a outra margem
que podia alcançar
se meus olhos estivessem sempre voltados
para as árvores a montante
e se meus braços franzinos se esforçassem em alcança-lo,
acompanhando os seus pés morenos
que me norteavam e me enchiam de coragem.
Minhas mãos agarravam agora a sua testa
e empurravam os seus óculos
e meus pés em seus ombros,
nesta festa de fim de ano,
balançavam excitados.
Mas neste preciso momento
em que o ponto intermediário entre as rodas dianteiras e traseiras
passam à minha frente,
eu...
Porque você, distraído,
não percebeu que eu não conseguiria voltar para casa de olhos fechados
e então eu comprei um computador e um telefone celular
e tirei carteira de identidade para prosseguir
em meio à fumaça dos ônibus por essa sinuosa avenida
que me conduz às margens de minha infância?
Agora meus braços não giram
e a correnteza me leva para baixo
para longe da sede da fazenda,
para onde outro rio,
para onde eu me livrarei deste computador celular identidade
levado por essas águas,
confiando na acuidade de sua visão
que identifica e me mostra o caminho das pedras dos seixos
dos grãos de areia que arranham a córnea
no instante em que um pássaro
assobia,
em que atiro
o diploma,
um sabiá
e o relógio
e aquela vergonhosa placa-me-homenagem-ao-fato-de-ter-conhecido-e-caído-nas-graças-de-quem-decide-me-homenagear-por-não-haver-feito-nada-contra-ele.
E então me ajoelho
e abaixo a cabeça
para melhor apreciar os registros que caem debaixo do vagão.
E, ajoelhado, rezo por ele,
que sorri e me chama
por um diminutivozinho carinhoso.
Minha visão era turva,
era assim que eu pensava,
a água nos olhos, debaixo do chuveiro,
era isso apenas,
mas os fragmentos de cibernética,
o horror que me fez,
que me faz,
que me fará
no instante em que esta ferragem enorme,
inexorável empurrar a minha cabeça para a frente
e arrastar-me pelas costas
e me der forças para lutar
para que os meninos
que me oferecem seis balas de café por R$ 1,99
possam também nadar com seus pais
nas águas repletas de peixes.
E quando a campainha anunciar a partida do trem
e a luz do abajur
sob a qual eu li certa noite um livro repleto de esperanças
e ilusões de amores e maldades
de alegrias e desgraças,
quando essa luz se fizer mais intensa do que nunca,
iluminando por mais algum tempo
tudo aquilo que depois serão trevas,
nesse agora meus olhos estarão bem abertos
e minhas retinas fatigadas
registrarão novamente
a mesma festa de natal no galpão da fábrica,
travesseiros de espuma e pneus de automóvel
antioxidantes
gotas salgadas de água oxigenada
flutuando sobre chapas de metal
o metal desse trem em movimento,
entre rios e crianças.
