Guilherme José Purvin de Figueiredo
A concepção de André Gide sobre Direito e Justiça no romance "Os moedeiros falsos" revela-se a partir de diferentes níveis de narrativa que vão se repetindo com alterações significativas como se a obra fosse o equivalente literário ao modelo de uma fuga musical. Variações narrativas se sucedem ao longo da obra, dentro de níveis diversos que se assemelham às vozes numa partitura. Tomemos, a título exemplificativo, a Fuga I, em do maior, do “Cravo bem temperado” de J. C. Bach para ilustrar esta premissa. Trata-se de uma fuga a quatro vozes. Um tema que é apresentado nos dois primeiros compassos reaparece na metade do segundo compasso, porém uma quinta acima, modificando-se gradativamente do tema inicialmente apresentado, mas sempre apresentando similaridades melódicas ou rítmicas. No quarto compasso, surge uma terceira voz, repetindo a estrutura melódica da primeira voz, agora uma oitava abaixo em relação à segunda voz, até que no quinto compasso surge a quarta e última voz da fuga, uma oitava abaixo em relação à primeira voz.
De forma análoga, André Gide desenvolve a história de um trio de jovens amigos, tendo um deles, Édouard, a intenção de escrever um romance chamado “Os moedeiros falsos” – ou seja, um romance com o mesmo título do romance de Gide que, nesse caso, poderia ser o equivalente, não à primeira voz, mas à própria partitura em sua integralidade. Ademais, o próprio André Gide publicou um diário no qual relata o processo de criação de seu romance, trazendo uma nova voz a esta trama. Essa semelhança não é escondida por Gide. Em determinado momento, Édouard comenta aos seus amigos Bernard, Laura e Sophroniska:
“O que eu gostaria de fazer, compreendam-me, é alguma coisa semelhante à Arte da fuga. E não vejo por que o que foi possível em música seja impossível em literatura...”. [1]
Não importa tanto se a ocorrência de uma infração social é fazer circular moedas falsas pela cidade ou frequentar um prostíbulo. Na verdade, são inúmeras as possibilidades de “delinquência”. Qualquer delas que se escolha, disto não resulta uma mudança drástica na “linha melódica” de uma das vozes dessa “fuga”. Eventualmente, poderíamos cogitar da ênfase da ilicitude do comportamento: em outra obra importante de Gide, por exemplo, os atos isolados de meras contravenções de “Os moedeiros falsos” são substituídos pelas atividades de uma organização criminosa chamada “Cruzada pela Libertação do Papa” [2].
Seria tentador desenvolver esta hipótese, porém isto exigiria um estudo aprofundado, não só do romance, como também de teoria musical, o que foge ao escopo deste pequeno ensaio. No entanto, esta imagem deve estar presente ao longo das especulações que seguem, já que as citações (equivalentes a determinada linha melódica) podem variar de nível (diferentes vozes, em diferentes intervalos harmônicos), sem que isto implique em prejuízo para o desenvolvimento das argumentações aqui apresentadas, as quais têm por norte a indagação: “Qual é a concepção de direito e justiça adotada por André Gide?”.
Uma segunda advertência preliminar diz mais respeito à Filosofia do Direito do que à Teoria Literária: o contraponto jus-filosófico para o exame da questão aqui proposta, nomeadamente a obra “Ética e Direito”, do jurista norte-americano Chaïm Perelman, não tem outra finalidade senão contribuir para o desenvolvimento das especulações aqui apresentadas. Não me preocupei, assim, em me ater exclusivamente à teoria da equidade apresentada por Perelman, senão na medida em que ela possa dialogar ligeiramente com o pensamento de André Gide. Por isso, as considerações aqui apresentadas certamente trazem ecos da leitura de jusfilósofos diversos, como é o caso de Alf Ross, Habermas, Hans Kelsen, Pachukanis, Robert Alexy ou Ronald Dworkin. Penso que este desleixo metodológico no campo jurídico possa ser perdoado, na medida em que o ensaio se desenvolveu sob a perspectiva da Teoria Literária.
O livro tem início com a revolta do jovem Bernard ao descobrir que seu pai não é o juiz Albéric Profitendieu, um homem descrito como jovial aos 55 anos de idade e “muito cioso das formalidades”.
No cap. II da primeira parte, o juiz é apresentado como amigo de Oscar Molinier, presidente da câmara. Os dois conversam sobre um caso que vem sendo investigado por Albéric Profitendieu e que envolve crianças de famílias conhecidas. Mais velho e experiente, Oscar Molinier aconselha o amigo juiz:
“_Ouça o que dizem o zelador e a falsa empregada, tudo vai muito bem. Mas cuidado, pois, se aprofundar demais essa pesquisa, o caso lhe escapará... Quero dizer que corre o risco de que ela o arraste para muito mais longe do que pensava de início”.
Albéric Profitendieu retruca ao amigo e conselheiro:
“_Essas preocupações nada têm a ver com a justiça”.
E Oscar Molinier:
“_Ora! Ora, meu amigo, nós sabemos, o senhor e eu, o que deveria ser a justiça, e o que ela é. Fazemos o melhor possível, está entendido; mas, por melhor que façamos, só chegamos a algo aproximativo. O caso que o ocupa hoje é particularmente delicado; entre quinze acusados, ou que, a partir de uma palavra sua, poderão sê-lo amanhã, há nove menores. E alguns desses meninos, o senhor sabe, são filhos de famílias muito distintas. É por isso que considero, neste caso, qualquer mandado de prisão como uma insigne falta de jeito. Os jornais de partido vão se apoderar do caso, e o senhor está abrindo a porta a todas as chantagens, a todas as difamações. Faça o que fizer, apesar de toda a sua prudência, o senhor não impedirá que nomes próprios sejam pronunciados... [...] ...em seu lugar, veja como eu agiria: buscaria um meio de pôr fim a esse abominável escândalo apossando-me dos quatro ou cinco instigadores... Sei que são difíceis de pegar; mas que diabo, é o nosso trabalho. Eu mandaria fechar o apartamento, o teatro dessas orgias, e me arranjaria de modo a avisar os pais desses jovens desavergonhados, com jeito, secretamente, e simplesmente de maneira a impedir as recaídas. Ah! Por exemplo, mande trancafiar as mulheres! Isso, eu lhe dou de bandeja; parece que estamos lidando com algumas criaturas de insondável perversidade e das quais é preciso limpar a sociedade. Mas, uma vez mais, não prenda as crianças; contente-se em amedrontá-las, depois cubra tudo isso com a etiqueta ‘tendo agido sem discernimento’ e que fiquem por muito tempo espantados de terem se safado apenas com um tremendo susto. Pense que três dentre eles nem sequer têm catorze anos e que os pais certamente os consideram anjos de pureza e inocência. Mas na realidade, caro amigo, cá entre nós, será que nessa idade já pensávamos em mulheres?”.
Tratando da justiça formal, Chaïm Perelman afirma que, por ela, “seres que fazem parte da mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”[3].
A questão nevrálgica, porém, consiste na escolha dos elementos que balizam a caracterização dessa categoria essencial e, mais do que isso, o tratamento que será reservado aos membros dessa categoria[4]. Vale dizer, ao contrário do que possa se inclinar o senso comum, o fundamento da justiça não é a igualdade, mas “o fato de aplicar uma regra a todos os membros de uma categoria essencial. A igualdade de tratamento não passa de uma consequência lógica do fato de nos atermos à regra”.
Quando Albéric Profitendieu objeta a insinuação de que o prosseguimento das investigações poderá trazer à tona fatos que incomodarão “famílias muito distintas”, ele parece recusar-se a caracterizar os jovens delinquentes como uma “categoria especial”, merecedores de um tratamento diferenciado. Oscar Molinier, por sua vez, replica com um argumento que pode até mesmo parecer cínico sob o ponto de vista moral: “nós sabemos, o senhor e eu, o que deveria ser a justiça, e o que ela é. Fazemos o melhor possível, está entendido; mas por melhor que façamos, só chegamos a algo aproximativo”.
O juiz Profitendieu não desconhece que as normas são suficientemente imprecisas para poderem ser aplicadas de modo que suas consequências concordem com o senso que um juiz tem de equidade. O que lhe parece inconcebível, num primeiro momento, não é reconhecer que “o princípio supremo da moral é não infligir sofrimento sem necessidade”[5] mas orientar seu julgamento a partir da escolha de uma determinada categoria a ser poupada dos vexames que fatalmente lhe serão infligidos a partir do momento em que a imprensa tomar conhecimento dos fatos investigados. Para ele, “a melhor educação do mundo não prevalece contra os maus instintos”[6].
Temos, assim, delineadas duas visões supostamente distintas sobre a distribuição da Justiça. Pelo discurso persuasório de Oscar Molinier, a categoria especial seriam as “famílias muito distintas”, ao passo que Albéric Profitendieu acredita que o mundo deve ser dividido entre pessoas com bons ou com maus instintos – independentemente de sua origem social.
Esta concepção de justiça, que num primeiro momento poderíamos chamar de “cristã”, é no entanto confrontada dramaticamente quando o juiz chega em sua casa e lê a carta que Bernard lhe escrevera: “É injusta, essa carta, abominavelmente injusta” – pensa ele [7]. Mesmo se desconsiderarmos a óbvia parcialidade do julgamento de Bernard (impactado pela descoberta que não é filho de Albéric, mas de um desconhecido que engravidou sua mãe), chama a atenção a passagem em que, na agressiva carta, o rapaz ressalta:
“Talvez o senhor considere que devo reconhecimento por ter sido tratado pelo senhor como um de seus filhos; mas primeiro, sempre senti, entre eles e mim, diferença no seu tratamento, e, depois, tudo o que o senhor fez, conheço-o bastante para saber que foi por horror ao escândalo, para esconder uma situação que não o honrava muito – e finalmente porque o senhor não podia fazer de outra maneira”.[8]
Albéric considera a carta injusta por três motivos possíveis:
(1) não acredita que tenha tratado Bernard de forma diferente daquela que tratou os demais filhos;
(2) não reconhece que tenha aceito o rapaz como um filho seu apenas por horror ao escândalo; e
(3) não admite que não tivesse outras opções de escolha.
A avaliação sobre a forma de tratamento dada ao Bernard é questão inteiramente subjetiva que não nos permite especular sobre o conceito de justiça e de direito. Por outro lado, que o horror ao escândalo oriente a vida de Albéric Profitendieu, isso parece inconteste pois, como é ressaltado no segundo parágrafo do segundo capítulo do livro, ele “era muito cioso das formalidades” [9]. Mas, destas três acusações, aquela que talvez mais interesse a André Gide seja a terceira: a liberdade de escolha. Este tema é particularmente caro ao escritor, como podemos verificar em seu livro “Os frutos da terra”:
“A necessidade da opção sempre me foi intolerável; escolher não era bem eleger que se me afigurava, e sim rechaçar o que não elegia. Compreendia apavoradamente a estreiteza das horas, e que o tempo só tem uma dimensão; era uma linha que eu desejara espaçosa e meus desejos nela correndo, uns aos outros prejudicavam necessariamente. Eu não fazia nunca senão isto ou aquilo. Se fazia isto logo aquilo se tornava lamentável, e permanecia muitas vezes sem mais nada ousar fazer, desatinado e como de braços sempre abertos, com medo, em os fechando, de não ter pegado senão uma só coisa. O erro de minha vida foi desde então o de não continuar nenhum estudo durante muito tempo, por não ter sabido conformar-me com renunciar a muitos outros.
...
Livros tinham-me mostrado que toda liberdade é provisória e que consiste apenas em escolher uma escravidão ou, pelo menos, uma devoção, como a semente dos cardos voa e vagueia, buscando o solo fecundo onde fixar raízes – e que só floresce imóvel. Mas tendo aprendido na escola que os raciocínios não conduzem os homens e que cada qual pode opor ao seu próprio um adverso, que se trata apenas de encontrar, ocupava-me com o procurar, por vezes, em meio às longas estradas”. [10]
Ora, se levarmos às últimas consequências a teoria de Albéric Profitendieu sobre os “maus instintos” de certas pessoas, que independem da educação recebida, talvez seja de fato irrelevante para o personagem saber se poderia ter feito “de outra maneira”. O que o faria, portanto, considerar injusta a carta de Bernard seria o fato de estar sendo condenado por ter “bons instintos”, ou seja, por haver acolhido de volta a esposa, depois do caso extraconjugal dela numa estação de tratamento!
O contraste entre os pontos de vista dos dois magistrados que são apresentados no romance é significativo. Enquanto Profitendieu procura agir discretamente, nos limites do formalismo, com ojeriza ao escândalo, seu amigo Oscar Molinier esbanja glutonice e autocomplacência em sua visão de mundo, como se vê em diálogo com o cunhado e escritor Édouard, amigo de seu filho Olivier Molinier:
“_Enquanto magistrado – prosseguia, - conheci mulheres que só se prestavam ao marido a contragosto, contrafeitas... e que, no entanto, ficavam indignadas quando o infeliz rejeitado vai procurar fora a sua provisão.
O magistrado começara a frase no passado; o marido a terminava no presente, numa inegável vingança pessoal. Acrescentou sentenciosamente, entre dois bocados:
_Os apetites alheios parecem facilmente excessivos, desde que não os compartilhemos. – Bebeu um grande gole de vinho, e depois: _E isso lhe explica, caro amigo, como um marido perde a direção de sua casa.”
Esta descrição que Édouard faz do velho magistrado é imprescindível para que compreendamos a intervenção do juiz, um evidente “recado” destinado a facilitar a solução da pendência que deverá ser resolvida pelo juiz Albéric Profitendieu:
“_ Meu colega Profitendieu viu-se encarregado de instruir um processo extremamente escabroso e constrangedor, tanto em si mesmo como pela repercussão e pelas consequências que podemos ter. É uma história inverossímil e na qual bem que gostaríamos de não acreditar... Trata-se, meu caro, de uma verdadeira empresa de prostituição, de um... não, não gostaria de empregar palavras de baixo calão; digamos de uma casa de chá, que apresenta isto de escandaloso: os frequentadores de seus salões são em sua maioria e quase exclusivamente secundaristas ainda bem jovens. Eu lhe digo que é de não se acreditar. Esses meninos decerto não se dão conta da gravidade de seus atos, pois mal procuram se esconder. Isso acontece na saída das aulas. Petisca-se, conversa-se, brinca-se com essas senhoras; e as brincadeiras vão continuar em quartos contíguos aos salões. Naturalmente, não entra lá quem quer. É necessário ser apresentado, iniciado. Quem cobre as despesas dessas orgias? Quem paga o aluguel do apartamento? É o que não parecia difícil de descobrir; mas só se podia levar avante as investigações com extrema prudência, por temor de se ficar sabendo demais, de se deixar levar, de ser forçado a denunciar legalmente e comprometer famílias respeitáveis das quais se suspeitava que os filhos pudessem estar entre os principais clientes. Fiz então o que pude para moderar o zelo de Profitendieu, que se lançava como um touro nesse caso, sem suspeitar que com sua primeira chifrada... (ah! Perdoe-me; não disse isso de propósito; ah! ah! ah! é engraçado; escapou-me)... Ele corria o risco de pegar o próprio filho. Por sorte, as férias licenciaram a todos; os colegiais disseminaram-se, e espero que todo esse caso vá desaparecer como água servida, ser abafado depois de algumas advertências e sanções sem escândalo.
_ Tem certeza de que Bernard Profitendieu estava envolvido nisso?
_ Não com certeza, mas...
_ O que o leva a acreditar?
_ Primeiro, o fato de que é um filho natural. Deve imaginar que um garoto da idade dele não foge de casa sem que esteja imerso na vergonha... E depois, acredito que Profitendieu foi tomado por algumas suspeitas, pois seu zelo enfraqueceu bruscamente; ou seja, ele pareceu dar marcha a ré, e a última vez que lhe perguntei em que pé estava o caso, mostrou-se perturbado: ‘Creio que, afinal, isso não vai dar em nada’, disse-me, e logo desviou a conversa. Pobre Profitendieu! Pois bem! O senhor sabe, ele não merece o que está lhe acontecendo. É um cavalheiro e, o que talvez seja mais raro: um ótimo rapaz. Ah! Por exemplo, a filha dele acabou de fazer um belíssimo casamento. (...)” [11].
Na visão de Perelman, “duas decisões diferentes, sobre o mesmo objeto, podem ser ambas razoáveis, enquanto expressão de um ponto de vista coerente e filosoficamente fundamentado. A tese segundo a qual não existe senão uma decisão justa, a que Deus conhece, supõe a existência de uma perspectiva global e única, que se poderia, com toda razão, considerar a única conforme à verdade” [12].
O que Oscar Molinier faz, porém, não é defender a razoabilidade de eventual decisão de Albéric Profitendieu na condução de suas investigações por conta da ausência de provas ou indícios que pudessem alicerçar alguma decisão. Pelo contrário, Molinier macula as razões da decisão do amigo de forma indelével, com a acusação de que estaria recuando por conta de envolver-se ele próprio num escândalo.
Já quase ao final do romance, Édouard relata em seu diário haver recebido a visita inesperada do juiz Profitendieu:
“_ O senhor é, creio eu, cunhado do presidente Molinier – disse-me ele. _ É a respeito de seu filho Georges que me permiti vir procurá-lo. O senhor aceitará, por certo, minhas desculpas quanto a uma atitude que pode a princípio parecer-lhe indiscreta, mas que a afeição e a a estima que tenho por meu colega lhe bastarão à guisa de explicação, espero.
Tomou fôlego. Levantei-me e fechei o reposteiro, por temor que minha faxineira, muito indiscreta e que eu sabia estar no cômodo vizinho, pudesse ouvir. Profitendieu aprovou-me com um sorriso.
_ Na condição de juiz de instrução – retomou, - devo cuidar de um caso que me embaraça extremamente. Seu jovem sobrinho já se havia envolvido antes numa aventura... – que isto fique entre nós, certo? – uma aventura bastante escandalosa, me que, quero crer, dada a sua tenra idade, sua boa fé e sua inocência tenham sido surpreendidas; mas que já me foi preciso, confesso, alguma habilidade para... circunscrever, sem prejudicar os interesses da justiça. Diante de uma reincidência... de outra natureza, apresso-me em acrescentar... não posso garantir que o jovem Georges se safe com tanta facilidade. Pergunto-me até se é bom para o menino procurar tirá-lo dessa, em que pese todo o desejo amigável que eu teria de poupar seu cunhado desse escândalo. Tentarei, entretanto; mas tenho agentes, o senhor entende, que se mostram zelosos, e que nem sempre posso segurar. Ou, se o senhor preferir, posso ainda; mas amanhã não poderei mais. Eis por que pensei que o senhor deveria falar com seu sobrinho, dizer-lhe a que ele está se expondo...
A visita de Profitendieu, por que não confessar, tinha-me preocupado terrivelmente de início; mas, desde que compreendi que não viera nem como inimigo nem como juiz, sentia-me antes divertido. Fiquei muito mais quando ele acrescentou:
_ Há algum tempo, circulam exemplares de moeda falsa. Fui avisado. Ainda não consegui descobrir sua proveniência. Mas sei que o jovem Georges – de modo bem ingênuo, quero crer – é um daqueles que as usam e as põem em circulação. São alguns, da idade do seu sobrinho, que se prestam a esse vergonhoso tráfico. Não tenho dúvida de que abusam da inocência deles e que essas crianças sem discernimento desempenham um papel de vítimas enganadas nas mãos de alguns culpados mais velhos. Poderíamos já ter pegado os delinquentes menores e, sem dificuldades, tê-los feito confessar a proveniência dessas moedas; mas sei muito bem que, ultrapassado certo ponto, um caso nos escapa, por assim dizer... isto é, uma investigação não pode voltar atrás e vemo-nos forçados a saber aquilo que preferiríamos ignorar. No caso, pretendo chegar a descobrir os verdadeiros culpados sem recorrer ao testemunho desses menores. Dei ordem, pois, para que não fossem perturbados. Mas essa ordem é apenas provisória. Gostaria que seu sobrinho não me forçasse a suspendê-la. Seria bom que ele soubesse que estamos de olhos abertos. O senhor nem faria mal de assustá-lo um pouco; ele está num declive perigoso...” [13]
O comentário cheio de segundas intenções feito por Oscar Molinier para Édouard ecoa no diálogo de Édouard com o pequeno Georges:
“_ (...) Ontem tive, a seu respeito, uma conversa muito importante com alguém muito importante, que você não conhece; que veio encontrar-se comigo para falar a seu respeito. Um juiz de instrução. É da parte dele que venho... Você sabe o que é um juiz de instrução?
Georges empalidecera bruscamente, e sem dúvida seu coração parara um instante de bater. Deu de ombros, é verdade, mas sua voz tremia um pouco:
_ Então, desembuche o que ele lhe disse, aquele velho Profitendieu”.
Apresentados, na forma de vozes de uma fuga, os comportamentos dos dois juízes, acabamos por constatar que Gide repudia tanto o discurso de Oscar Molinier sobre “famílias muito distintas” quanto o de Albéric Profitendieu sobre “ingenuidade e falta de caráter”. Ele expõe com bastante contundência o jogo armado entre os dois magistrados: de um lado, Molinier, ao acusar Profitendieu de prevaricação por conta do envolvimento do filho deste na casa de prostituição, joga por terra qualquer possibilidade de serem as decisões deste levadas a sério; de outro, num discurso que em muito se assemelha a uma segunda voz da mesma melodia numa fuga, Profitendieu oferece ao colega, através de seu cunhado, um contragolpe, lembrando-lhe que o filho caçula de Molinier está envolvido com falsificadores de moedas: “uma investigação não pode voltar atrás e vemo-nos forçados a saber aquilo que preferiríamos ignorar”.
O romance de André Gide demonstra a inexistência, na França do início do Século XX, de qualquer alternativa de convívio entre a liberdade de costumes com o Direito, salvo se, na aplicação do direito e na administração da justiça não houver qualquer compromisso com a verdade e a coerência ética.
Neste passo, não podemos olvidar que a questão subjacente a todo o romance é a da homossexualidade – comportamento que em determinadas situações a moral dominante prefere ignorar. Na condição de homossexual, André Gide é também um “delinquente” aos olhos da sociedade de sua época – da mesma forma que os filhos dos dois juízes – Bernard Profitendieu e Georges Molinier. A vida de Gide é, assim, uma terceira voz, que dialoga com as demais no “Diário dos Moedeiros Falsos”.
Pela leitura do romance, vimos que a alternativa apresentada pelos juízes será “ignorar” o que não tem condições de ser reconhecido oficialmente pela sociedade. De forma singela, poderíamos dizer que Gide expõe a hipocrisia social no campo da sexualidade, da mesma forma que já o haviam feito seus conterrâneos Flaubert e Zola, sem qualquer preocupação em oferecer um confronto entre teses jurídicas opostas.
Daremos agora um salto de trinta anos ou pouco mais no tempo. A respeito da relação entre direito e homossexualidade, o jusfilósofo Ronald Dworkin, em obra bastante prestigiada, ressalta que até mesmo na segunda metade do Século XX a maioria da população anglo-americana entendia que a homossexualidade, a prostituição e as publicações pornográficas eram imorais e indagava que papel este fato deveria desempenhar na decisão de torná-las criminosas [14]. Conta que, no ano de 1958, em palestra ministrada para a Academia Britânica e intitulada “A implementação da moral”, lorde Devlin concluíra: “...devemos nos perguntar se, examinando de maneira fria e desapaixonada, consideramos essa prática um vício tão abominável que sua simples presença constitui uma ofensa. Se for esse o sentimento real da sociedade em que vivemos, não vejo como possa ser negado à sociedade o direito de erradicá-la”.
Se estendermos para o universo parisiense esta visão dominante três décadas antes na Grã Bretanha, restará claro que André Gide realmente não teria outra alternativa senão denunciar os jogos de interesses subjacentes às investigações judiciais em curso na Paris do começo do século XX. A interferência jurídica na intimidade das pessoas no campo da orientação sexual somente será questionada com maior ênfase décadas mais tarde. O mesmo lorde Devlin, convidado a preparar novo discurso no momento em que a Comissão Wolfenden acabara de publicar recomendação de que as práticas homossexuais privadas, entre adultos que com elas consentissem, não fossem mais consideradas criminosas, assim viria a se manifestar:
“Nesse domínio, sua função [ do direito ], do modo como vemos, é a de preservar a ordem e a decência públicas, proteger o cidadão do que é ofensivo e injurioso e propiciar salvaguardas suficientes contra a exploração e a corrupção dos outros. (...) Em nosso ponto de vista, não é função do direito interferir na vida privada dos cidadãos, nem procurar impor qualquer padrão particular de comportamento, além do necessário para realizar os objetivos que delineamos. (...) Devemos reservar um domínio da moralidade e da imoralidade privadas, com o qual, para falar crua e sumariamente, o direito não tem nada a ver” [15].
Na anotação do dia 28 de novembro de 1921 de seu “Diário dos Moedeiros Falsos”, Gide cita Dostoievski:
“Aqueles moços tinham uma ideia muito pouco clara dos limites de seu poder” – está dito em O idiota que estou relendo atualmente. Excelente epígrafe para um dos capítulos [16].
Num contexto social onde a intimidade sexual era regulada juridicamente e a homossexualidade era condenada da mesma forma que a cunhagem e circulação de moedas falsas ou o homicídio, é compreensível que a descrença de André Gide nas instituições do Estado fosse completa, daí advindo o ceticismo e o sarcasmo na descrição do comportamento dos magistrados e pais dos “jovens delinquentes”. Todavia, diante da influência que a sua obra (assim como a de Wilde e a de Proust) traria para a mudança de paradigmas jurídicos voltados à regulação da vida sexual das pessoas, poderíamos dizer que o próprio Gide também tinha uma ideia muito pouco clara dos limites de seu poder como literato.
[1] GIDE, André. Os moedeiros falsos. P. 208.
[2] GIDE, André. Os subterrâneos do Vaticano.
[3] PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo : Martins Fontes, 2002. P. 41.
[4] “A regra de justiça não pode especificar de forma totalmente determinada o tratamento reservado aos membros de uma categoria essencial, senão quando se trata de conceder algo disponível em quantia ilimitada. O mais das vezes não é esse o caso: a regra deverá então contentar-se em indicar um tratamento que conterá um ou vários elementos indeterminados, cuja determinação dependerá de circunstâncias exteriores” (PERELMAN, cit., p. 41).
[5] PERELMAN, cit., p. 291.
[6] GIDE, André. Os moedeiros falsos, cit. p. 22.
[7] GIDE, André. Os moedeiros falsos, cit., p. 27.
[8] Id., p. 25.
[9] Id., p. 20.
[10] GIDE, André. Os Frutos da Terra. Pp. 57 e 59.
[11] GIDE, André. Os moedeiros falsos, cit., p. 254.
[12] PERELMAN, Chaïm. Ob. Cit., p. 357.
[13] GIDE, André. Os moedeiros falsos, cit., pp. 361-362.
[14] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo : Martins Fontes, 2002. Pp. 371 e ss.
[15] Report of the Committee on Homosexual Offenses and Prostitution, 9-10, 24. Apud DWORKIN, pp. 373-374.
[16] GIDE, André. Diário dos Moedeiros Falsos. São Paulo : Estação Liberdade, 2009. P. 71.