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  • Guilherme Purvin

Revelações em 1 hora

- Guilherme Purvin -

 

Uma placa amarela encobre a errada arquitetura do sobrado na pracinha no Alto da Penha:


Celso fixa os olhos na placa e, em seguida, dirige-se ao local. O numeral em vermelho, único e inquestionável. Uma vida. Ao redor dele, letras palavras em negro sobre a placa de zinco.

— Você pode me mostrar a licença para a placa?

O balconista olha para Celso. Provavelmente é um fiscal da prefeitura, pensa, e não consegue disfarçar a agitação.

— Tenho que perguntar ao contador. Um minuto.

Celso aguarda a ligação telefônica. O balconista tem aproximadamente 30 anos de idade. É branco e seus braços são cobertos de tatuagem. Desliga e corre para um arquivo de aço. Abre-o, retira uma pasta e procura um papel.

— Está aqui, moço. Faz uns três meses que foi tirada.

Celso lê atentamente o documento.


— Você chama isto de licença?


Devolve o documento ao balconista, atravessa para o outro lado da praça, fotografa o estabelecimento e retorna.

— O que está acontecendo? Há alguma irregularidade?

— A placa diz que vocês fazem revelações em uma hora. Isso é verdade?

— Sim, com certeza! — afirma o balconista, com um olhar desafiador. — Tem alguma coisa para revelar?


— Não. Quem afirma que faz as revelações é você. Veja... — mostra na tela de seu celular a imagem da placa.

— Pois não, se quer revelar essa foto, é só enviar o arquivo. Pode ser por e-mail ou zap.

Celso apoia a mão esquerda no balcão.

— Não existem revelações em uma hora.


O balconista se sobressalta.

— O que o senhor está pretendendo? O senhor é fiscal da prefeitura, não é? Quer uma grana? Tudo bem. Acho injusto, mas concordo.

— Pode-se dizer que sou um fiscal, sim, mas não da prefeitura. Quero apenas que me prove o que diz. Não existem revelações em uma hora. Em uma hora ocorrem revoluções. Revelações, jamais.

— Não entendo. O senhor quer arranjar briga? O estabelecimento está em ordem, não fiz nada de errado.

— Admita. Não existem revelações em uma hora. O que se faz em apenas uma hora? Em uma hora alguém pode conceber um filho. Em uma hora alguém pode ser sequestrado. Em uma hora alguém pode tomar um porre. Admito que em uma hora é até possível que alguém redija uma tese de doutorado. Mas fazer uma revelação? Nunca! Em uma hora ninguém revela porra nenhuma. Revelações levam uma vida.

O balconista abre uma gaveta. Celso percebe que ele acaba de apanhar uma arma.

— Saia daqui. Você é louco. A placa não tem erro nenhum.

— Ah, você chama de revelação a morte dos transeuntes? Isso, meu caro, está longe de ser uma revelação.


— Não quero matá-lo, a não ser que não me dê alternativas.


— Nunca prometi alternativas! Vamos, Admita! Em uma hora nada é revelável. Uma hora... — Celso começa a rir. — Uma hora... Afinal, qual o significado desse período?

— Significado do período de uma hora? — pergunta o balconista, sem baixar a arma. Celso parece não se importar com isso.

— Vejamos. Em 24 horas a terra gira ao redor de si mesma... Mas por que dividir esse período em 24? Talvez esse número tenha relação com algarismos romanos. Ou será que não?

— Relação com o quê? Você é louco.

— Talvez não tenha relação nem revelação. O que você faz em uma hora?

— É uma pergunta retórica?

— Não. Eu não faço perguntas retóricas. Eu sou um fiscal das afirmações peremptórias e das certezas estúpidas. Diga, o que você faz em uma hora?

— Eu revelo fotografias. Exatamente como está anunciado no cartaz.

— Em uma hora alguém assiste a dois enlatados. Ou ouve mais do que uma sinfonia. Onde um divisor perfeito?

— Que divisor? Que diabos você está falando?

— Uma hora... Talvez ela só sirva como medida de tempo de uma volta do ponteiro maior do relógio em torno de si. Nesse caso, convenhamos, um ponteiro é só um ponteiro. É tolo demais esperar de movimentos de ponteiros qualquer apocalipse, não acha?

Nesse momento entra uma mulher com uma camisa amarela de propaganda eleitoral das eleições do ano anterior e um short de lycra preto. O balconista esconde depressa o revólver na gaveta.

— Pois não?

— Você revela mesmo em uma hora?

— Bom, se forem até 120, eu garanto. Se for mais do que isso, só amanhã, porque não tenho papel de filme suficiente.

— Gostaria que revelasse em pelo menos umas oito horas — explica a freguesa.


— Não deixe que ele lhe faça de boba — diz Celso. — Você acha mesmo que um giro completo do ponteiro dos minutos vai lhe revelar alguma coisa?

A mulher sorri para Celso.

— Eu peço ao menos seis giros. Uma hora é pouco demais para mim.

O balconista se exaspera:

— Vocês são comparsas? É isso? Não me aborreçam ou eu chamo a polícia!

— Esse balconista me aborrece — diz a mulher para a Celso.


— É uma nefelibata. Um prestidigitador — complementa Celso. — Um farsante. Revelações em uma hora... Pois sim!


— Uma hora, com certeza, é pouco demais. Todo velório que se preze tem pelo menos umas seis horas. A não ser que ele esteja se referindo à impressão de imagens capturadas por uma câmera fotográfica.


— Pura bobagem. Impressão de imagens não é revelação alguma.

— Com certeza não é! Isso seria um processamento de dados eletrônicos.


— Você está certa, Rita — admite Celso, batizando mulher de seus sonhos assim, do nada. — Revelações ocorrem de acordo com diversos movimentos não circulares.

— Exatamente, Armando — responde Débora, dando a Celso o nome que sempre sonhou para o homem que um dia a encontraria e a faria feliz. — Como, por exemplo, aqueles em direção a lugares desconhecidos da cidade.

Celso e Débora saem do estabelecimento. Do Alto da Penha, correm os olhos em busca de revelações. Têm uma hora apenas, mas será uma hora de religiosidade atemporal. Afastam-se dos penhascos recobertos pelo Viaduto Aricanduva, dos pedintes, faróis acesos, sirene de viaturas, bêbados e filas no ponto de ônibus. Na curva, onde edifícios alcançam as nuvens, espantam-se com a inutilidade de uma lua enorme no céu da cidade. Uma lua que se revela no topo do mundo em uma hora.

O balconista, novamente sozinho, guarda a arma, apaga as luzes, fecha o estabelecimento e sai cantando: “Chanson d'amour, ra ta ra ta ra, je t'adore...”

Foi um dia duro, pouco dinheiro no caixa, mas pelo menos desta vez não matou nenhum transeunte.

São Paulo, 4 de janeiro de 2020





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