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  • Guilherme Purvin

Hoje (ainda) é dia d'El Rey

Atualizado: 11 de set. de 2023

- Guilherme Purvin -


Milton Nascimento está se despedindo da carreira profissional, realizando uma turnê intitulada "A Última Sessão de Música" - referência a uma canção que aparece no álbum "Milagre dos Peixes", sobre o qual pretendo falar nesta postagem.


Dentro da MPB, Milton é um dos maiores defensores das florestas, dos afrodescendentes e dos povos originários. Essa dedicação à causa socioambiental evidencia-se sobretudo em álbuns lançados entre 1982 e 1992, como Anima (1982), Missa dos Quilombos (com Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra) (1982), Yauaratê (1987), Txai (1990) e O Planeta Blue na Estrada do Sol (1992). No entanto, o seu amor à natureza vem de muito antes. Pretendo aqui focalizar o álbum e, em especial, a canção lançada em 1973: "Milagre dos Peixes".



Da Canção do Sal ao Clube da Esquina


Milton Nascimento nasceu no Rio de Janeiro/RJ em 26 de outubro de 1942, mas seu nome é associado a Minas Gerais, mais especificamente à cidade de Três Pontas, onde foi criado. Sua música chega ao grande público com a benção de uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, Elis Regina. Em setembro de 1966, Milton, então com 23 anos de idade, vem para São Paulo e conhece Elis, que na época fazia um estrondoso sucesso, tendo vencido no ano anterior o festival de música da extinta TV Excelsior, com a canção "Arrastão" (Vinicius de Moraes & Edu Lobo) e estando sob o comando do programa "Fino da Bossa", ao lado de Jair Rodrigues, na TV Record. Elis decide gravar a "Canção do Sal", composição de Milton.


No ano seguinte (1967), Milton inscreve três músicas no Festival Internacional da Canção da TV Globo, obtendo o 2º lugar com "Travessia" (parceria com Fernando Brant). Seu sucesso devia-se não somente à qualidade das composições, mas também à sua voz, uma das mais bonitas da MPB. Naquele ano, lança seu primeiro álbum, no qual interpreta, além de "Travessia" e "Canção do Sal", outras jóias como "Outubro", "Morro Velho" e "Cata-vento" (sem letra).


Dois anos mais tarde, Milton lança dois álbuns. Num deles, destacam-se novas obras primas, tais como "Sentinela", "Beco do Mota" e "Pai Grande". O segundo, "Courage", é voltado para o público estrangeiro. "Travessia" é cantada em inglês, com o título "Bridges". A canção que dá o nome ao álbum, parceria de Milton com Márcio Borges e Paul Williams, é cantada em inglês e português. "Gira Girou" (Round 'n' Round), outra parceria com Márcio Borges, é uma das primeiras composições em que Milton canta o seu amor pelo Planeta Terra, ainda que numa comparação com o amor pela mulher: "Desperta, minha amada / Linda como a Terra / E vem pelos campos / Com mil vivas ao redor".


Em 1970, lança o álbum "Milton", no qual evidencia-se a influência dos Beatles em suas canções (e nas dos seus amigos do "Clube da Esquina", dentre os quais Lô Borges e Beto Guedes), a começar pela primeira faixa: "Pra Lennon e McCartney" (Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant).


Em 1972, sai o estupendo álbum duplo "Clube da Esquina", com canções interpretadas por Milton ou por Lô Borges. Lembro-me até hoje do primeiro dia em que ouvi esse disco, numa tarde daquele ano, pela Rádio Eldorado (AM), de São Paulo, ocasião em que também fiquei conhecendo outro álbum maravilhoso, "Água e Vinho", de Egberto Gismonti. Cinquenta anos mais tarde, o disco de Milton e Lô seria eleito por 162 especialistas consultados pelo podcast "Discoteca Básica" como o Melhor Disco Brasileiro de Todos os Tempos. Dele destacam-se as canções "Cravo e Canela", interpretado por Lô Borges e Milton Nascimento, composição de Milton e Ronaldo Bastos; "San Vicente", composição de Milton e Fernando Brant; "Nada Será Como Antes", interpretado por Beto Guedes e Milton, composição deste e de Ronaldo Bastos, assim como "Cais".


Milagre dos Peixes: Uma obra de arte mutilada pela censura


EM 1973, é lançado o álbum "Milagre dos Peixes". Entendo que esse álbum, um dos mais belos dos anos 70, mereceria ser registrado como uma parceria entre Milton e Naná Vasconcelos: a percussão e a voz de Naná foram absolutamente essenciais para que a gravação chegasse ao resultado final.


O formato era diferente de tudo o que havia: não se tratava de um álbum duplo, mas de um LP e um compacto com três músicas extras. Gravado numa época em que sua inspiração estava particularmente iluminada e sua voz, mais bela do que nunca, o álbum foi violentado pela censura federal. A ditadura militar queria impedir Milton de cantar os versos originais das canções.


No entanto, Milton teve uma ideia genial: cantaria os poucos fragmentos que haviam sido liberados pelo Departamento de Polícia Federal. Ao fundo das canções censuradas, sobressaía o trabalho de Naná Vasconcelos, soando como uma espécie de grito de guerra africano, com uma profusão de instrumentos de percussão, incluindo a própria voz do maior percussionista que já houve na história da MPB.


Escravos de Jó

Na faixa "Os escravos de Jó", uma quadra na voz de Clementina de Jesus foi tudo o que sobrou da mutilação: “Saio do trabalho e / volto para casa e / não lembro de canseira maior / em tudo é o mesmo suor”. Só vim a conhecer a poesia censurada em fins de 1977 ou começo de 1978, quando as letras chegaram às minhas mãos. Imediatamente foram divulgadas no jornal estudantil Exideia, criado por um grupo de estudantes da Fac. Direito da USP:


"Dizem que estarr bom / Dizem que estarr bom / Difícil ver um troço pior /Mas dizem nós estarr na melhor // Se viver, eu sou réu / Se morrer, é só véu / Melhor é colher favos de mel / Melhor mandar às favas você // Saio do trabalho – ei / Volto para casa – ei / Não lembro de canseira maior / Em tudo é o mesmo suor // Ó bela Rapunzel / Seu jovem menestrel / Precisa de um pouco de amor / Mas que não faça muito calor // A vaca Vitória lambeu, lambeu, / mexeu, mexeu e remexeu / Quem falar primeiro, Quem falar primeiro / Vai ser aquele que comeu // Gritos de alegria, de histeria, / e luzes e bombas Bomba cai do céu (Que fedor) // Saio do trabalho – ei / Volto para casa – ei / Não lembro de canseira maior / Em tudo é o mesmo suor".


Em 1978, o público pode ouvir a melodia dessa canção na voz de Elis Regina. Seu título, entretanto, foi mudado para "Caxangá", tendo a letra sido bastante modificada (penso que em boa parte para melhor) por Fernando Brant:


"Sempre no coração/ haja o que houver / a fome de um dia poder / morder a carne dessa mulher // Veja bem, meu patrão / como pode ser bom / você trabalharia no sol / e eu tomando banho de mar // Luto para viver / vivo para morrer / enquanto a minha morte não vem / eu vivo de brigar contra o rei // Em volta do fogo / todo o mundo abrindo o jogo / conta o que tem pra contar / casos e desejos / coisas dessa vida e da outra / mas nada de assustar / quem não é sincero / sai da brincadeira correndo / pois pode se queimar, / queimar // Saio do trabalh – ei / volto pra cas – ei / não lembro de canseira maior / em tudo é o mesmo suor".


A voz de Clementina de Jesus, com seu timbre grave que, de acordo com especialistas, evocava o canto dos africanos submetidos à escravização, valorizou a quadra liberada. O restante da canção foi preenchido pela voz de Milton: "Para / Paraê ê / O Pára Parauê Paraná", acompanhado de berimbau, o que nos remete aos cantos de capoeira, que em sua origem era luta dissimulada na forma de dança. A quadra liberada dizia diretamente respeito à luta contra a opressão.


Cabe destacar que "Escravos de Jó" era uma nova versão de canção de Milton e Fernando Brant lançada em 1970 com o título "O homem da sucursal". A letra, nessa primeira gravação, dizia respeito ao trabalho urbano, ou seja, do próprio Fernando Brant, que trabalhava na sucursal da revista Cruzeiro em Belo Horizonte. Havia sido composta para fazer parte da trilha sonora do filme "Tostão: a fera de ouro", de Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite. Ouça as três versões:


Hoje é dia d'El Rey

Em “Hoje é dia d’El Rey”, que contou com a participação do cantor e compositor Sirlan, sobre quem já falei no artigo "Viva Zapátria", postado em 7/6/22, a censura chegou às raias do absurdo, ao liberar tão somente as palavras “Filho meu...”. Milton reservou para o resto da canção apenas um profundo lamento.


Trata-se de um embate político entre pai e filho, o jovem chamando para a ação armada contra El Rey, o velho pedindo ao filho que entenda El Rey e aja com amor. Ao final, pai e filho chegam a um consenso:


Filho – Não pode o noivo mais ser feliz / não pode viver em paz com seu amor / não pode o justo sobreviver / se hoje esqueceu o que é bem-querer / Rufai os tambores saudando El Rey / nosso amo, senhor e dono da lei / soai clarins, pois o dia do ódio / e o dia do não são por El-Rey // Pai – Filho meu, ódio você tem, / mas El-Rey quer viver só de amor / sem clarins, sem mais tambor / vá dizer: nosso dia é de amor // Filho – Juntai as muitas mentiras / jogai os soldados na rua / nada sabeis desta terra / hoje é o dia da lua // Pai – Filho meu, cadê o teu amor? / nosso Rey está sofrendo a sua dor // Filho –Leva daqui tuas armas / então cantar poderia / mas nos teus campos de guerra / hoje morreu poesia // Ambos – El Rey virá salvar... // Pai – Meu filho / você tem razão / mas acho que não é tudo / se o mundo fosse o que pensa / estava tudo no mesmo lugar / pai você não tinha agora / e hoje pior ia estar // Filho – Matai o amor, pouco importa / mas outro haverá de surgir / o mundo é pra frente que anda / mas tudo está como está / hoje então e agora / pior não podia ficar / Ambos – Largue o seu dono e procure nova alegria / se hoje é triste e saudade pode matar / vem, amizade, não pode ser com maldade / se hoje é triste a verdade / procure nova poesia / procure nova alegria / para amanhã...


Cadê

A censura também não poupou a canção "Cadê"

Meu príncipe encantado / Meu príncipe cansado / Cadê tuas botas de sete léguas? / E a Tilim de Peter Pan? / E a tua esperança, Branca de Neve? / Cadê? Quem levou? / Quem levou? // Meu príncipe esperado / Meu príncipe suado / Que é do beijo da Bela Adormecida / E a espada de condão / E o país maravilhoso de Alice / Cadê ? Quem levou? / Quem levou? // Meu príncipe assustado / Meu príncipe queimado / Corta a noite escura desta floresta / Mata o fogo do dragão / Traz da lenda os jogos de nossa festa / Pr’eu poder brincar / E sorrir


Versão liberada, na voz de Gal Costa (Álbum "Água Viva", de 1978)


Milagre dos Peixes (a canção)

Sem intenção de fazer um jogo de palavras, milagrosamente "Milagre dos Peixes" foi poupada pela censura, não sei se por condescendência ou falta de percepção do censor sobre o que tratava a canção escolhida para dar o nome ao álbum.


Ao publicar o meu livro "A Propriedade no Direito Ambiental", quis que a sua epígrafe fosse a poesia dessa canção, por entender que ela guarde inteira relação com aquele livro, que teve como base a minha dissertação de doutoramento na Faculdade de Direito da USP, sob orientação da Prof. Odete Medauar. Os dois primeiros versos da canção são uma declaração de amor à natureza:


Eu vejo esses peixes e vou de coração

Eu vejo essas matas e vou de coração à natureza


O poeta, ao contemplar os peixes e as matas, não vê neles uma mercadoria, um "bem ambiental". Ele vai de coração integrar-se à harmonia da fauna e da flora, numa palavra, à natureza.


Os versos que seguem, porém, denunciam a ascensão do ódio, a partir de uma ideologia capitalista que é passada pelo principal meio de comunicação no Brasil, a televisão:


Telas falam colorido de crianças coloridas

De um gênio televisor

E no andor de nossos novos santos

O sinal de velhos tempos

Morte, morte, morte ao amor


A sordidez das "Redes Globo" é evidenciada pelos mecanismos sujos de formatação ideológica do povo. São telas coloridas, atraentes: vale lembrar que, no dia 31 de março de 1972, era oficializado o novo padrão de transmissão em cores (sistema PAL-M). A data escolhida não é mera coincidência.


Mas não apenas isso. O público alvo são as futuras gerações: são crianças "coloridas", não, é claro, no sentido que poderíamos pensar hoje, de diversidade étnica. São cores artificialmente criadas pelo tubo das TVs (para os mais jovens: as telas planas, de plasma, LCD ou LED, não existiam naquela época). Milton e Fernando Brant denunciam que as vítimas maiores não são os adultos, mas as crianças que, a partir dessa época, começam a abandonar os jogos e brincadeiras com seus amigos e passam a postar-se como zumbis diante das telas das TVs.


A consequência imediata da criação desses "novos santos" (as mensagens veiculadas nas emissoras de TV) é a morte ao amor: sinal de velhos tempos, tempos de totalitarismo da Alemanha, Itália, da política de ódio de Francisco Franco, Salazar e tantos ditadores latino-americanos.


Eles não falam do mar e dos peixes

Nem deixam ver a moça, pura canção

Nem ver nascer a flor, nem ver nascer o Sol

E eu apenas sou um a mais, um a mais

A falar dessa dor, a nossa dor


Aqui, o poeta denuncia o desprezo pela a natureza em si, isto é, não transformada em bem apropriável. São veiculadas ideias empobrecedoras que pretendem substituir a biodiversidade pela monocultura domada e acabar com toda fauna que não possa compor um rebanho destinado ao abate. Ademais, "eles" não deixam ver a moça, pura canção - numa clara alusão à censura de todas as ideias que fujam daquilo que o mercado impõe. O cantor, por sua vez, mostra-se impotente para reverter esse quadro, cabendo-lhe tão somente o papel de cantar essa dor, como outros poetas também o fazem. Uma pessoa a mais, sim, mas uma pessoa que integra um grupo que conta, dentre outros, com a participação de Carlos Drummond de Andrade, nosso maior poeta do Século XX, militante da causa ambiental.


Desenhando nessas pedras

Tenho em mim todas as cores

Quando falo coisas reais

E no silêncio dessa natureza

Eu que amo meus amigos

Livre, quero poder dizer

Eu tenho esses peixes e dou de coração

Eu tenho essas matas e dou de coração


Estes últimos versos constituem a mais explícita recusa à apropriação do meio ambiente. Quinze anos mais tarde, a Constituição Federal declararia no caput do art. 225 o status jurídico da fauna, da flora e dos elementos abióticos da natureza, reproduzindo em linguagem fria e técnica o que é poesia na voz de Milton: "Todos têm direito ao meio ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (...)". Sendo o meio ambiente um bem comum de todo o povo, Milton e Fernando Brant declaram: eles têm a fauna e a flora, pois também lhes pertencem, mas as dão de coração, pois não aceitam privatizá-las.



Tema dos Deuses


“Tema dos Deuses” é uma música instrumental e, por esse motivo, não teria a Polícia Federal como censurá-la. Ouça-a aqui.

Em setembro de 2003, escrevi uma crônica com o mesmo nome, que foi publicada na edição piloto da Revista de Direito e Política (n.0) e, uns dez anos mais tarde, republicada no meu livro "Dias Simplesmente Perfeitos". Relendo o texto hoje, só não o renego porque fui sincero no momento em que o escrevi e porque, talvez, tenham sido os afagos ao mercado e, em especial, aos banqueiros, o ovo da serpente que deu origem ao pesadelo em que vivemos desde 2016 e, muito mais intensamente, a partir de 2018.


Naquela crônica, hoje totalmente ultrapassada pela nova realidade nacional e mundial. eu dizia que a passagem dos Doors e do Pink Floyd para Milton Nascimento foi para mim algo natural. A minha perplexidade estava em ouvir, em lugar de letras das canções, gritos de angústia que, com a percussão de Naná Vasconcelos, permeavam cada faixa daquele álbum. Isso não tinha relação alguma com os gritos de pavor e cantos apoteóticos de “Ummagumma”. Mas havia algo que aproximava estes mundos musicais tão distantes, na voz amordaçada de Milton.


Reparo hoje que, em 2003, deixei escapar um dado que explicaria toda a emoção que sentia ao ouvir "Tema dos Deuses": ela era a trilha sonora de um filme que foi exibido na Sala do Estudante, da Faculdade de Direito da USP, em 1977, em plena ditadura militar. O filme chamava-se "O apito da panela de pressão" e encontra-se disponível no Youtube.


Na página desse média-metragem, postado por iniciativa de Paulo Massoca Macciocca, líder universitário bastante conhecido em 1977, constam estas informações:


Documentário de 25 minutos produzido em 1977 por iniciativa do DCE Livre da USP e DCE Livre da PUC-SP sobre a retomada das manifestações estudantis. O CAASO tinha uma cópia do filme que era exibida em sessões itinerantes nos campi universitários, principalmente no interior de São Paulo. As exibições eram feitas de surpresa, seguidas de debates, sendo que projetor e filme eram retirados de imediato para impedir a apreensão pela polícia. "O filme é um painel do ressurgimento do movimento estudantil em São Paulo e mostra a primeira passeata estudantil (05.05.1977, no Viaduto do Chá) e a primeira concentração política aberta fora dos campus universitários, além de entrevistas e montagem de material fotográfico da época. Realizado rapidamente para intervir em plena efervescência dos acontecimentos, o filme foi utilizado sobretudo como instrumento político nas mobilizações estudantis de todo o país. Várias cópias foram apreendidas pela Polícia Federal e algumas sessões canceladas pela Censura." (Guia de Filmes, 68)


Ao ouvir o álbum "Milagre dos Peixes", interpretei esta mensagem: não queriam que o artista falasse sobre um novo país, um país que despontava na pessoa de um operário do ABC. A minha conscientização política veio de diversas fontes: dos artigos de Luís Carlos Maciel para o jornal "Rolling Stone", de conversas com minha prima Terê Figueiredo e com o saudoso diretor de teatro Lino Rojas Peres, das peças de Bertold Brecht, mas sobretudo da música de Milton Nascimento, Chico Buarque, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré. Esses foram os poetas que levaram algumas pessoas da minha geração a sonhar com uma democracia. A sonhar com algo parecido com o que estava vivendo naquele mês inesquecível e já tão distante, quando, em lugar do discurso de FHC sobre estabilidade do mercado, confiança do mercado, possibilidades do mercado, passou-se a falar em fome zero, justiça social, alfabetização, moradia para todos.


Essa seria a mensagem oculta do álbum "Milagre dos Peixes": a alegria e a esperança precisavam sobreviver e resistir aos ataques da ditadura militar. Em 2003, acreditava na voz firme do Itamaraty, na defesa da soberania e autodeterminação dos povos, mesmo em meio às crises na Venezuela e no Iraque. Na área ambiental, a nomeação de uma mulher negra e amiga de Chico Mendes, Marina Silva, aumentava ainda mais a convicção de que agora estava sepultada a ameaça do obscurantismo. Era o momento de construção de uma nova história para o Brasil. Não havia sido em vão essa luta de mais de 20 anos pela construção de um partido democrático com bases populares que agora culminava na vitória de um operário para a Presidência da República. Com alegria, ouvia esse novo discurso, no qual o bem estar do povo voltava a ser a razão de um governo. Um governo eleito democraticamente que levava o diapasão do Fórum Social Mundial de Porto Alegre para afinar as cordas da orquestra de Davos. A vitória da sociedade civil organizada sobre o economicismo neoliberal.

A crônica "Tema dos Deuses", porém, prosseguia com uma constatação amarga: ao final daquele primeiro ano de governo, já estava de volta o mercado todo poderoso no comando da nação. O que dizer, então, acerca de nossos sentimentos?


A Última Sessão de Música


Milton Nascimento despede-se da vida artística. Como dito ao início deste texto, escolheu o nome de uma composição instrumental sua, onde ele mesmo toca piano, em meio ao ruído de copos e pratos em algum bar ou restaurante. Passa, com isso, a sensação de que muitas pessoas vêem na música nada mais do que um fundo sonoro para preencher o ambiente. A composição foi inspirada por um filme de 1971, chamado "A Última Sessão de Cinema e dirigido por Peter Bogdanovitch. Ouça aqui a composição, interpretada por Milton em 2009.


Quando os sonhos têm seu sentido alterado, o canto de Milton permanece íntegro. É a mais legítima expressão de nossa perplexidade ante a trunculência do neoliberalismo que, servindo-se das facções ultradireitistas e das milícias, quer passar um rolo compressor sobre a esperança de transformação. Uma esperança cantada por Violeta Parra, Zeca Afonso, Pablo Milanez, Mercedes Sosa, Chico Buarque ou Victor Jara. Por Milton. O governo do ditador Ernesto Geisel tentou calar Milton Nascimento em 1973. Mas isso de nada adiantou: ouvindo “Tema dos Deuses”, sabemos que, algumas vezes, uma simples melodia fala mais do que todas as palavras derramadas pelo gênio televisor.


 

PS 1: Se você for ouvir o álbum aqui comentado pelo Spotify, saiba que todos os títulos estão embaralhados. "A última sessão de música", por exemplo, é apresentada como sendo "Hoje é dia d'el Rey".

PS 2: Para quem quiser aprofundar-se na produção musical de Milton Nascimento, recomendo a dissertação de mestrado em Música "No trilho da década de 1970: o trem chamado Bituca e a viagem pela América Latina", de Fernanda Paulo Marques (ECA-USP)


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