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  • Guilherme Purvin

A data já está decidida

- Guilherme Purvin -


Rats veio de Varsóvia só para me dar um oi. Abri a porta de casa e ele me entregou uma garrafa de vodka polonesa. En seguida, olhou consternado para as paredes da sala e dos quartos, todas em péssimo estado de conservação. Antes, porém, que começasse com suas lições moralistas e sua caixinha de pedreiro, comuniquei a ele:


— Dia 19, vou tomar uma decisão.


— Por que dia 19? Não entendi.


— Simples, Rats. Há muitos anos, num certo dia 19, decidi ficar em cima do muro, fugir da briga e fechar o menu do restaurante. Foi uma decisão impactante.


— Decidiu não decidir mais nada?


— Sim. Decidir significa eliminar, descartar, jogar no lixo. A indecisão é a principal responsável pela acumulação, pela estagnação e pela obesidade. A natureza, o planeta, o universo, tudo o que não é humano está sempre tomando decisões. Por exemplo, a erupção vulcânica: por quantos milênios não estava a lava borbulhando lá dentro, até que decidiu sair? Diz a canção de Jacques Brel que muitas vezes um antigo vulcão que acreditávamos estar extinto explode em fogo e, quando a noite chega e o céu brilha, o vermelho e o negro combinam com perfeição.


— Vulcões não decidem nada, Guilherme. Basta conhecer o limite de resistência da crosta terrestre.


— Se tudo fosse assim fácil, não teria morrido tanta gente no Terremoto de Lisboa.


— Na época não havia tecnologia para tanto. Além disso, não basta saber, é preciso acreditar na ciência e ter força política para fazer a coisa certa. No caso de Lisboa, era praticamente impossível delimitar o raio do abalo sísmico.


— Sem dúvida, Rats. No entanto, ao menos as pessoas poderiam ser orientadas a ficar longe de grandes edificações. Voltando ao assunto principal, a minha próxima decisão não poderá passar do dia 19. Trata-se de uma data notável, em que se comemora a vitória dos portugueses na Batalha de Guaxinduva.


— Batalha de Guaxinduva? Nunca ouvi falar disso!


— Não seja por isso, Rats. Te explico e aproveito para fazer um marketing de meu próximo livro, "Paredes Descascadas", que à página 101 traz o conto "O Escudo de Marmóstenes", a respeito das olimpíadas de Guaxinduva. Imperdível! Você pode fazer uma pré-aquisição do livro pelo site da Editora Terra Redonda.


— O conto é a respeito dessa batalha?


— Metaforicamente falando, sim. Foi graças à mira certeira de nossos colonizadores, Maranhão passou a ser governado por José Sarney.


— Mas e o Flávio Dino?


— O Flávio Dino veio depois. O que importa é que todos saibam que a própria Nossa Senhora, a Mãe de Deus em pessoa, apareceu em meio à batalha de Guaxinduva, bem ao estilo dos deuses gregos, transformando areia em pólvora e pedras em bala em benefício dos portugueses. Com essa ajuda divina, foi sopa a matança dos 2500 indígenas que defendiam a causa de Daniel de la Touche.


— Que coisa triste! 2500 mortes numa única batalha. E justamente de quem não tinha nada a ver com o conflito entre Portugal e França!


— Continua sendo assim. Quantos palestinos foram mortos até ontem, desde o dia do ataque do Hamas? Mais de sete mil!


— E quase 1500 israelenses.


— Sim, eu sei.


— Sabe, mas só perguntou sobre os palestinos.


— Não vamos discutir agora nesses termos, Rats. Estamos falando sobre minha decisão. Para que tudo dê certo, precisarei previamente decidir o que devo decidir. Passo a relacionar algumas possibilidades.


— Ah, isso é verdade. É preciso analisar o leque de possibilidades e escolher uma delas apenas. As demais serão excluídas. Você terá que pensar em dicotomias.


— O assunto é antigo. Norberto Bobbio adorava falar sobre isso.


— Bobbio? Faz muito tempo que não ouvia falar desse nome! Fez moda nos anos 1990!


— Mais uma dose de vodka? Passe-me seu copo, Rats. Depois foi o Baumann. Amores líquidos. Tenho uma penca de livrinhos dele, dia desses abro algum. Teve também a época da Vandana Shiva, mas essa era mais lida pelos ecologistas. Ultimamente todos falam de Lacan. E se eu pensasse em mutilação de órgãos?


— Credo!


— É um tema maldito na Internet. O Chat GPT, dia desses, recusou-se a responder a uma pergunta minha sobre corte de unhas, entendendo que eu falava sobre mutilações físicas. Mas há uma corrente de admiradores dessa prática.


— Sob a perspectiva etimológica, constitui sem dúvida uma decisão e tanto. Duvido, porém, de sua utilidade prática. Em primeiro lugar, estariam definitivamente encerrados todos os seus sonhos musicais. Se, com duas mãos, você toca precariamente piano e violão, com uma o máximo que conseguiria seria solar alguma melodia de bossa nova, ao estilo pianístico do Tom Jobim.


— Comentando os arranjos de César Camargo Mariano para o álbum Elis & Tom, o Tom indagou ao então marido da cantora: "César, que coisa incrível, quantos dedos você tem em cada mão?". César acreditava que Tom o estivesse elogiando. Na verdade, longe disso, Tom queria saber o que tinha César contra acordes perfeitos maiores e menores, sem sétimas menores, nonas, quintas diminutas e décimas-terceiras. Com apenas uma mão, os acordes seriam muito mais simples, como propunha Tom, provavelmente apaixonado pela Elis, mas que não queria dar o braço a torcer - pois nesse caso, não poderia simultaneamente tocar piano e fumar charuto.


— Bah. Que ideia tola!


— Também sob a perspectiva poética, a amputação da mão atenderia a um anseio de Drummond, quando afirma que ela está suja e é preciso cortá-la, de nada adiantando lavar, pois a água está podre e o sabão é ruim.


— Aié, espertinho? E aí como é que vamos dialogar, sem travessão?


— Não entendi onde você quer chegar, Rats.


— Como é que você digita "—" no computador? Simples assim: ALT + 0151 no teclado numérico. Pois então tente apertar com uma só mão a tecla ALT e os números 0151 lá do outro lado do teclado!


— Certo, Rats, você tem razão. De qualquer forma, eu não disse nunca que pretendia cortar uma mão. Estava apenas divagando a respeito do significado da palavra decidir, que em latim significa cortar fora.


— Isso em sentido figurado! Quer dizer, escolher uma possibilidade e eliminar todas as restantes. Cortá-las nesse sentido. Além disso, se você tomar uma decisão no próximo dia 19, a sua última decisão não terá sido uma decisão, mas apenas uma bravata. Quer saber, acho que já bebemos demais. Vá dormir em seu quarto, enquanto eu dou um jeito nas paredes de seu apartamento.


Contemporizador, Rats não pode pensar de outra forma. Sua função é manter tudo exatamente do jeito que está, ainda que para tanto tenhamos que seguir o conselho de Tancredi: Se vogliamo che tutto rimanga com'è, bisogna che tutto cambi. Carrega-me para minha cama e fecha a porta do quarto. De toda sorte, uma coisa está decidida: dia 19 tomarei alguma decisão. Antes, porém, preciso decidir será 19 deste mês, desde ano ou algum dia 19 mais distante no calendário. Afinal, é preciso aproveitar a reforma grátis do apartamento. Quer dizer, não exatamente grátis, pois Rats enxugou toda a garrafa de vodka que trouxe de presente para mim.

São Paulo, 19 de novembro de 1991

 

Nota do autor: Este conto foi publicado originalmente na coletânea "Tapires Antológicos" (São Paulo : Editora Ponto Marginal, 1999). O personagem taciturno e o pedreiro Rats ressurgiriam em 2017, no conto "As visitas de Rats" (Laboratório de Manipulação, São Paulo : Letras do Pensamento, 2017), no conto "O último restaurador" (Sambas & Polonaises, Florianópolis : Tribo da Ilha, 2019) e no conto "Paredes Descascadas" (Paredes Descascadas, São Paulo : Terra Redonda, 2023).

Guilherme Purvin, 29-10-2023


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