- Guilherme Purvin
Milagre em São Paulo - Capítulo 1
Guilherme Purvin & Gavin Adams

Isso aconteceu já faz muito tempo, lembrei-me porque hoje à tarde encontrei uma garotada andando na rua vestida de frade fransciscano. Mas não eram frades e as meninas não eram freiras claretianas, na verdade pertencem a uma espécie de grupo de escoteiros urbanos com um toque de Antonio Conselheiro. Já não me engano mais, aprendi tudo a respeito deles.
Eram os tempos de Bebeto e Romário na seleção, tempos de minha paixão pela Roseli. A Roseli gostava do Caio, o Caio era maluco pela Roseli - um casal perfeito, de forma que ali não havia nenhuma quadrilha de Drummond, eu estava lá de intrometido, amando loucamente a namoradinha de um amigo meu.
Naquela época eu também tinha um jeitão messiânico, andava de sandálias de couro com um T de madeira no peito. Nada a ver com São Francisco, esse T era de Tadeu. Tadeu Emílio, isto é, eu. Eu fazia um tipo despojadão, hippie tardio, extremamente tardio. Até o Kurt Cobain já havia colocado uma bala na cabeça e eu, que estava começando a gostar tanto de Something in the way e de Love Buzz, ainda achando que finalmente apareceram os sucessores dos Beatles.
Eu estava com 24 anos - nasci no ano do tricampeonato. Meu segundo nome era homenagem ao presidente da república, um gremista. Eu não, eu sempre fui Lusa. A Roseli e o Caio eu conheci na faculdade, como, aliás, todo mundo com quem convivo até hoje. Convivo não, todo mundo com quem eu troco e-mails: é um pessoal da faculdade que montou um e-group alucinado e que fala de tudo, de futebol a rock. Mas, voltando para aquela tarde, eu estava ali na esquina da Paulista com a Bela Cintra, quando fui abordado:
__ Cara, você está viajando? Parado aí, de boca aberta...
Detesto que me surpreendam na rua. Dá susto, entende? Tipo Psicose, mas sem a cortina com as gotinhas escorrendo. Não via direito quem era o intrometido, pois a mão daquele homem segurava alguma coisa na minha cara. Não sabia se cheirava ou se olhava.
__ Olha só o que eu achei, Tadeu!
Vi um pedacinho da cara do sujeito e percebi na hora quem era: Valdir, um amigo que gradativamente se tornou um conhecido e, agora, uma vaga recodação. Processo agravado pela entrada na faculdade, quando deixer de ver a galera do RPG. Ele dizia que gostava de jogar, mas o que gostava mesmo era só de ganhar. Quando adolescentes, compartilhamos um interesse pelo esotérico, tipo o Manual do Mago. Muito louco, as viagens proféticas, a busca por iluminações em Visconde de Mauá, de onibus, as longas discussões regadas a Katzwein, a descoberta do rock progressivo.
Ao contrário do Valdir eu aproveitei a virada operática do rock, afastando-me do metal pesado. Adorava aqueles panoramas tipo cinemascope, o épico das narrativas dignas de romance, cada personagem com sua própria canção-tema, o álbum duplo com ilustrações figurativas pirantes -- e principalmente aquele leito esplêndido de cordas e metais sinfônicos enquadrando alucinantes solos de guitarra. O self enquadrado por uma quadrilha romântica mas excitada até o orgasmo harmônico pela oscilação das guitarras distorcidas. "Por que será que um vinho chamado 'O leite da mulher amada' traz no rótulo uma freira?", perguntou certa vez Valdir, perversamente observando o rótulo do vinho barato. Essa digressão poética curiosamente pertinente à época da adolescência bateu tão forte que logo foquei no objeto que ele agora, no presente agora, me tinha à altura do nariz: uma batata frita -- ovalada e finamente fatiada, do tipo chips.
__ Você não está olhando.
Achei muito irritante a sua insistência, e me lembrei que ele sempre fora assim. Eu não conseguia ver o que ele propunha e o susto ainda não tinha permitido que eu me recompusesse todo. Tive raiva.
__ Olha na batata: uma figura -- disse, paciente (o canalha estava gostando de minha raiva!).
Aí eu vi. Vi claro como o dia: a imagem de Nossa Senhora! Triangular, como mariposa na parede, não mera semelhança, não, era ela, com a coroa na cabeça, o manto azul celeste, o rosto negro, do jeito que foi retirado do leito do Paraíba do Sul pelos pescadores.
__ Não vai morder, Valdir!
Mas já era tarde, a imagem milagrosa e crocante despedaçou-se em sua boca de um jeito tão fútil, como se mera batata frita fosse.
__ O que você fez, idiota? -- esbravejei, mas ele caiu na gargalhada. Depois, disse com seriedade:
__ Reação típica de quem não tem fé. Se aconteceu uma vez, vai acontecer de novo!
E me arrastou com ele pela calçada do Colégio São Luís. Paramos do lado do Center 3, onde tinha um McDonald.
__ Quer ver, Tadeu? -- e pediu um quarteirão com cheddar.
Quando a moça entregou o sanduíche, fomos para um canto mais vazio, perto do banco.
__ Prepare-se... Olha! -- e abriu o sanduíche. As marcas do ketchup sobre o queijo amarelo não deixavam margem a dúvidas: aquele era São Cristóvão carregando o Menino Jesus no ombro e atravessando o rio. E então Valdir sentenciou: __ Isso acontecerá sempre que estivermos juntos. Podemos ficar milionários!
Combinamos de nos encontrarmos mais tarde, consumidos que estávamos com aquele segredo, meio que temendo um ao outro, ainda incertos acerca de qual dos dois recebia as transmissões de raios católicos.
Longe do Valdir, decidi que o mais correto seria evitá-lo a qualquer custo. Caso contrário, a coisa não pararia mais, um Santo Agostinho na sopa de letrinhas, um São Sebastião na almofada de alfinetes, Maria Madalena no suor da cerveja, madonas e jesuses de todas as idades nas mais inesperadas superfícies.
Guilherme Purvin é escritor e advogado. Gavin Adams é artista gráfico, cartonista e escritor.