Guilherme Purvin
Escrevi esta novela juvenil há aproximadamente 15 anos. Por três anos acreditei que tivesse sido irremediavelmente perdida com a queima do HD de um velho laptop. Há dias encontrei em meio aos papeis e às traças umas folhas impressas com o esboço da novela. Em "Deixe Lawrie em paz!", procuro parodiar livrinhos de espionagem vendidos em gôndolas de supermercados. A inspiração veio da leitura, nos anos 1980, de um romance de Augusto Boal chamado de "Jane Spitfire". Diante da profusão de preconceitos e barbaridades típicas do pensamento do estadunidense médio (que não vive em Nova York nem em San Francisco), percebi que as sugestões gráficas de IA serviam com perfeição para o gênero. Trata-se, pois, de uma parceria imaginária com Chester Gould, que em 1931 criou as HQs de Dick Tracy. No caso, a psicografia é feita pelos algoritmos do ChatGPT4 que, no entanto, são extremamente moralistas e não atendem a qualquer pedido que a eles sugira algum lance de sacanagem.
São Paulo, dezembro de 2024
Índice
Capítulo 1 (publicado no dia 18/12/2024)
Capítulo 2 (publicado no dia 19/12/2024)
Capítulo 3 (publicado no dia 20/12/2024)
Capítulo 1
Nasci em Washington, D.C., no dia 9 de agosto de 1974, quando as estações de rádio e televisão anunciavam a renúncia do Presidente Nixon. Para ser mais exato, nasci numa maternidade em Alexandria que, na realidade, fica a uns quinze minutos de Washington. Minha mãe era museóloga e, naquele tempo, trabalhava no Museu Nacional de História Natural, uma das unidades mais populares do Smithsonian Institute. Passei a infância e adolescência percorrendo os salões daquele museu, que conhecia melhor do que meu próprio quarto de dormir. Das coleções de mineralogia às peças arqueológicas, do zoológico de insetos ao enorme mamute na rotunda, nada escapava aos meus olhos. Meu pai, hoje aposentado, era funcionário do governo. Trabalhava na área burocrática do Pentágono, um lugar inacessível e misterioso, para onde ele jamais me levou. Para mim, o mundo natural e todas as suas maravilhas eram algo corriqueiro, enquanto o universo político de meu pai constituía um grande mistério.
Morávamos numa casa de classe média em South Kensington, bairro de Maryland. Minha casa ficava a menos de quinze minutos de Rock Creek Park, e foi lá que eu passei a maior parte de minha infância, brincando com meus amigos de colégio às margens do riacho. Depois, na adolescência, percorria aquelas trilhas bem cuidadas e limpas sob as árvores com uma garota dois anos mais velha do que eu e que me ensinou a dar beijo de língua. Não consigo me lembrar de seu nome.
Aos 18 anos, meus planos eram de ingressar na Elliott School of International Affairs ou na McDonough School of Business. No entanto, 1992 foi um ano particularmente conturbado para minha família. Meu pai foi designado para uma missão em Los Angeles por conta dos distúrbios desencadeados com a absolvição dos tiras que agrediram Rodney King em 29 de abril daquele ano. Hoje, ninguém deve se lembrar desse episódio que provocou, ao fim das contas, a morte de mais de cinquenta pessoas e ferimentos em alguns milhares, além de prejuízos materiais que superaram a casa de um bilhão de dólares. Meu pai não tinha nada a ver com o Corpo de Fuzileiros Navais, nem muito menos com a Guarda Nacional da Califórnia, que cuidaram do caso. Seu objetivo era bem outro, de detectar a presença de arruaceiros e comunistas naquele movimento aparentemente espontâneo. Sua designação para aquela missão, no entanto, deixou-o fortemente excitado e isso transformou a vida em casa num verdadeiro inferno, às vésperas de sua partida para o oeste e de minhas entrevistas para ingresso na faculdade.
O caos doméstico culminou com o divórcio de meus pais e minha reprovação na entrevista. Humilhado, decidi-me a nunca mais tentar ingressar numa faculdade. Preferi partir para cursos técnicos e de curta duração. Como técnico em hardware, ganhei o suficiente para os meus gastos, obviamente morando com minha mãe. Mas, depois de um certo tempo, essa minha atividade perdeu sentido, já que os computadores eram substituídos anualmente e os modelos antigos praticamente não chegavam a apresentar defeitos: sua obsolescência decorria da introdução de novos softwares que exigiam máquinas cada vez mais velozes e com mais memória. Larguei mão desse ofício, comecei a frequentar cursos de culinária e enveredei pelos restaurantes de minha cidade, trabalhando como garçom, cozinheiro ou lavador de pratos.
Posso dizer que minha vida foi muito tranquila até as 8h20 do dia 11 de setembro de 2001, quando um avião da American Airlines, voo 77, deixou o Aeroporto Washington Dulles em rota para Los Angeles com uma tripulação de seis membros e cinquenta e três passageiros, vindo a colidir, às 9h37, contra o prédio onde papai trabalhava. Por muito pouco não foi ele uma das vítimas do horrendo atentado terrorista.
Nessa época eu já tinha 27 anos e trabalhava no restaurante russo da Sra. Elena Nikolaevna Maxima, uma estridente matrona de sessenta anos de idade, 100 quilos e franjinha na testa encobrindo parcialmente os olhos. O restaurante ficava em Georgetown, próximo à Livraria Barnes & Noble, onde eu costumava passar após o expediente, por volta das quatro da tarde, para folhear livros sobre guerras e espionagem. Foi ali que, um ano antes do ataque aéreo a Nova York e Washington, eu conheci Natalie, uma ruivinha de olhos azuis que trabalhava na seção de livros de viagem e turismo. Admito que me interessei por Natalie logo no primeiro dia em que a vi. Ela tinha um jeito todo especial de me atender, fitava-me com seriedade nos olhos e, ao me ouvir, erguia devagarinho o ombro esquerdo e o deslizava para trás, fazendo um gracioso semicírculo e afastando os cabelos da testa. Eu não me cansava de ir à livraria sob pretexto de ouvir suas indicações bibliográficas e à procura do momento exato para convidá-la uma primeira vez para um bar ou cinema. Filha de um casal de professores da George Washington University, Natalie era três anos mais nova do que eu e sonhava em conhecer lugares exóticos como o Deserto de Gobi, na Mongólia, as neves de Kilimanjaro, o Carnaval no Brasil ou o templo de Angkor do Império Khmer.
Com a mesma intensidade que desejava aquela garota, eu também sonhava em ser partícipe na implantação da democracia em todos os países do mundo, que era a razão de ser das intervenções das Forças Armadas dos Estados Unidos da América, para os quais papai trabalhava, em países tão exóticos quanto incivilizados como aqueles que Natalie queria conhecer.
Depois de um mês de idas e vindas que me custaram a compra de guias de viagem para a Polônia, o Vietnã, o Peru e a África do Sul, começamos a namorar e logo concluímos que deveríamos nos casar, pois não conseguíamos ficar longe um do outro por muito tempo. O grande problema era a falta de dinheiro: juntando o que eu ganhava como garçom no restaurante russo de dona Elena e o que Natalie recebia na livraria, sequer poderíamos cogitar de alugar um estúdio na região onde ainda vivíamos com os pais.
O atentado ao Pentágono e às torres gêmeas despertaria meu instituto patriótico. Insisti com meu pai para que me ajudasse a ingressar na CIA e ele conversou com meu tio Eddie, seu irmão, que era a pessoa mais bem relacionada da família. Meu curriculum vitae não era dos mais brilhantes: depois de formado em análise de sistemas, passei sucessivamente por uma ONG de assistência social especializada na relocação de moradores em situação de rua, onde trabalhei um mês e quinze dias. Depois, por uma relojoaria, onde por quatro meses adquiri certa experiência na área contábil. Fui demitido e consegui emprego numa rede de supermercados, onde fiquei dois longos anos trabalhando como caixa. E, nos últimos dez anos, no restaurante "PECTOPAH", da matrona Elena Ivanovna Maxima. Tio Eddie, porém, confiava em meu potencial e ofereceu à CIA as melhores referências.
Nos meus primeiros dias de trabalho, lidando apenas com questões burocráticas, minha perspectiva de futuro profissional e emocional pareciam das mais promissoras. E então, justamente por conta de minha competência excessiva, certo dia meu nome foi cogitado para uma missão especial na América do Sul: identificar uma suposta célula terrorista que estaria se formando na fronteira entre o Chile, o Panamá e o Brasil: região estratégica onde era produzida toda a energia elétrica do continente, graças à quantidade de águas do Rio Amazonas, que ali desaguava numa imensa catarata, quase tão grande quanto Niagara Falls.
Comuniquei minha nova missão a Natalie, que ficou muito animada com o que ela chamava de passeio turístico e me corrigiu: a foz do Amazonas ficava mais ao norte. Os latinos nativos da região chamavam o local de Cataratas de Iguaçu. Ademais, a tríplice fronteira era entre Brasil, Argentina e Paraguai — e não como eu havia equivocadamente anotado. Minha amada queria conferir se as belezas do lugar eram reais. Quanto a mim, pouco me importava a altura da queda, a quantidade da água ou os nomes dos países. O que eu queria mesmo era descobrir a existência e desbaratar eventual grupamento terrorista da tal tríplice fronteira. Mais uma vez os conhecimentos de Natalie sobre destinos turísticos nos foi útil: ela descobriu que as cataratas ficavam na divisa entre Brasil e Argentina e que a fronteira com o Paraguai estava apenas próxima dali. Era surpreendente como aquela ruivinha era capaz de guardar tantos pequenos detalhes geográficos insignificantes daquele amontoados de repúblicas sul-americanas.
Capítulo 2
Numa aeronave 727-100C de pouco mais de 90 passageiros, do Dulles International Airport rumamos a Miami, onde fizemos conexão num 767-400ER, com três centenas de adolescentes e latinas ruidosas repletas de sacolas. O voo foi tranquilo, sem turbulência. Descemos exaustos num lugar chamado GRU, a poucos quilômetros da maior cidade da América do Sul, após maratona de dezesseis horas entre voos, alfândega, imigração e retirada de bagagens. Tomamos um táxi branco e vermelho na saída do aeroporto, depois do pagamento de um voucher. São Paulo foi a primeira grande decepção para nós dois. Esperávamos ver uma floresta cheia de pássaros multicoloridos, moças de tanga e rituais indígenas às margens do Rio TIetê. Já no táxi, porém, constatamos que aquela cidade era congestionada e malcheirosa. Ainda bem que estavam previstos apenas três dias para nossa permanência naquele aglomerado urbano caótico — o tempo estritamente necessário para estabelecermos nossos contatos com nossos agentes naquele país.
— Eu expliquei um milhão de vezes, sugarcube — era assim que Natalie me chamava, "torrãozinho de açúcar" —, eu explique que São Paulo é uma espécie de Bombaim ou Marrakesh dos latinos, um lugar repleto de tendas vendendo tecido, onde você deve barganhar, jamais aceitando o preço inicial. E também é um lugar repleto de restaurantes. Mas cuidado com duas coisas: os pickpockets e comidas cruas! Os riscos de contrair alguma doença, em razão da falta de higiene típica dos latinos, não são de se desprezar.
Natalie era uma pessoa de sorriso fácil. Sua expressão facial era sempre agradável, deixando o interlocutor com a sensação de que ela o ouvia com simpatia e atenção, fosse ele um cliente da livraria onde trabalhava ou um turista perdido na estação de metrô de Silver Spring, perguntando se estava muito longe do Mall. Ela olhava atentamente para o rosto da pessoa mais enfadonha do mundo fazendo-a crer, com seu olhar, que era mais instigante do que Indiana Jones. Esse simples olhar, acompanhado daquele movimento sensual de seu ombro esquerdo era suficiente para angariar vantagens surpreendentes, especialmente em seu trabalho. Mesmo depois de iniciarmos nosso namoro, ainda comprei manuais de conversação que prometiam ensinar chinês mandarim em 24 horas e até mesmo uma edição de colecionador do Guia do Mochileiro da Patagônia, de Douglas Adams. Com esta sua arma feminina infalível, Natalie não precisava se preocupar muito com seu domínio ainda precário do idioma dos nativos da América do Sul.
Fomos recebidos na porta do Consulado dos EUA em São Paulo por Neil Armstrong, o famoso astronauta, que agora trabalhava para a CIA como eu. Depois de uma hora de conversa regada a Coca-Cola e Big-Mac com ketchup, Armstrong nos conduziu ao hotel, localizado no ponto nevrálgico da cidade — a chamada Avenida Paulista. A conversa durante o percurso foi quase telegráfica: frases curtas, generalidades. Disse a Neil que me espantara com o número de presídios de segurança máxima ao redor do Aeroporto GRU. O que levava o governo brasileiro a construir esses presídios em vias de acesso a um dos principais aeroportos internacionais do pais? Para mim, a resposta era clara: facilitar a migração daqueles ladrões para os EUA, a partir da fronteira com o México. Isso me deixou muito aborrecido.
Apesar de curta, nossa passagem por São Paulo teve uma programação intensa. Natalie aproveitou as duas manhãs reservadas para minhas reuniões no consulado com os agentes da CIA, para visitar o tal bairro marroquino com suas tendas de tecidos, próximo ao chamado "centro velho" de São Paulo, No fim da tarde de nosso segundo dia no Brasil, ela chegou carregando dezenas de sacolas de roubas e bijuterias.
— O que você pretende fazer com tudo isso, honey?
— O lugar onde fui é inacreditável, Sugarcube. Chama-se "25 de março", ou seja, é uma data de calendário! Uma multidão compacta arrasta-se ininterruptamente pelo meio da rua, impedindo a passagem de carros. Imagine uma Times Square de mendigos. Lojas com as portas totalmente abertas para as calçadas, como se elas fossem a continuação das próprias ruas. Ou, noutro sentido, como se as ruas fossem uma mera extensão das lojas. As calçadas, por suas vez, estão cheias de tendas e mesas, esteiras no chão e prateleiras encostadas nos postes de energia elétrica, paineis com óculos, relógios, colares. Os nativos trabalham para turcos, judeus, sírios, gregos, palestinos, numa agitação febril. Ah, e tem os tais bolivianos, que trabalham de graça para os coreanos! Precisamos descobrir como é esse sistema revolucionário de relações de trabalho, Sugarcube!
— Mas o que você pretende fazer com esse monte de roupas, bolsas e sapatos?
— Ora, Sugarcube! Pretendo ganhar um dinheirinho extra. Imagine só o quanto pagarão por essas quinquilharias os guaranis paraguaios, os paranaenses, os argentinos! Comprei espelhinhos e colares de contas de vidro colorido. Poderemos trocá-los por pepitas de ouro!
Sorri de orgulho com sua demonstração de empreendedorismo. Natalie era uma mulher que seguia estritamente os padrões da ética protestante que fez da América o que ela é hoje e será sempre. Apanhei uma das sacolas com uma logomarca onde as letras "ADS" se entrelaçavam como fitas. Animadíssima, Natalie pousou a sacola de minhas mãos e começou a retirar a bugiganga que havia comprado, mostrando-me toda gabola:
— Veja que linda essa estatuazinha, Sugarcube! — e mostrou-me a estátua de um elefante com corpo humano, montado num ratinho. — É Ganesh, deus dos hindus. E é do mais puro marfim. O vendedor me garantiu! E você não imagina a pechincha! Eles pediam cem dólares e, no fim de cinco minutos de negociações, paguei somente oito dólares e cinquenta cents.
— US 8.50 por uma peça de marfim, honey? Realmente os primitivos não têm a menor noção de que isto poderá ser vendido em Nova York por 85 mil dólares! Ah ah ah! Mas, honey, você falou em turcos, gregos, judeus, libaneses... O que fazia uma estátua indiana naquele lugar?
— Hello! Já ouviu falar em globalização, em comércio internacional, Sugarcube? — respondeu Natalie com aqueles olhos azuis que me engoliam e me convidavam para um mergulho como se fosse o poço no buraco da toca do coelho de Alice. Natalie não brincava nunca. Ela prosseguiu, didática: — Desde que Vasco da Gama descobriu a rota para as Índias, passando pelo Cabo das Tormentas, o comércio internacional tornou-se uma rotina.
Eu não devia ainda me surpreender com aquela cultura enciclopédica de minha garota. Por vezes tinha a sensação de que o cérebro dela estivesse permanentemente conectado ao Google. De onde é que ela retirara aquela informação sobre Vasco da Gama? Afinal, quem era mesmo esse tal de Vasco da Gama? Ela prosseguiu em seu relatório:
— Eu perguntei a todos os lojistas por que aquele lugar se chamava "25 de março", mas ninguém conseguia entender a minha pergunta. Não sei se o meu sotaque é acentuado demais, pois todos pediam para eu repetir a mesma pergunta duas ou três vezes, até responderem que não tinha a menor ideia. Tive que acessar a Wikipedia pelo meu iPhone no meio de um bar que servia comidas árabes e acabei descobrindo que em 25 de março de 1824 havia sido promulgada a primeira constituição do Brasil. Fiquei impactada positivamente com a informação: pelo visto, este é um país que preza muito o seu direito constitucional!
Assim era Natalie, sempre curiosa, procurando compreender o significado de tudo ao seu redor, ou melhor, procurando apreender conhecimentos, apossar-se de informações aleatórias sobre as cidades e os países que, até o dia em que deixamos Washington, ela só conhecia pelas suas leituras dos Guias Michelin e pelo livro de Douglas Adams. Gastara, em sua primeira andança pelo Brasil, cerca de 800 dólares — um gasto que, de acordo com meus cálculos iniciais, teria sido suficiente para permanecer uma semana naquele país. Mas decerto conseguiria revender tudo aquilo no Paraguai pelo triplo do preço.
Hoje, eu me pergunto se toda minha paixão por ela decorria de minha admiração pelo seu tino comercial, pelo seu cabedal de conhecimento sobre história e geografia ou por aqueles cabelos ruivos, aqueles olhos azuis, aquele movimento circular de seu ombro esquerdo, girando para trás e aqueles seus seios perfeitos de mamilos rosados.
Melhor ficar quieto, não devia escrever com uma garrafa de gin à minha frente.
Capítulo 3
À noite fomos jantar na matriz da churrascaria "Fogo do Chão". Havia em Washington, na Pennsylvania Ave., a menos de um quarteirão da livraria onde conheci Natalie, uma dessas churrascarias brasileiras. No entanto, os preços praticados por lá eram inacessíveis. Quando saía com Natalie, o máximo que o meu bolso suportava era um jantar na pizzaria de uma grega escandalosa ou o restaurante russo "PECTOPAH", da Sra. Elena Ivanovna Maxima.
O restaurante ficava numa avenida próxima a um pequeno aeroporto da cidade. Chegamos em dois automóveis da CIA. Sabendo de nossa chegada, o gerente do hotel mandou hastear a bandeira dos EUA ao lado da bandeira do Brasil na entrada e determinou aos manobristas que vestissem fantasias inspiradas em personagens de Walt Disney, apenas para nos prestigiar.
O jantar era patrocinado pelo Governo Americano, representado por três compatriotas: o seriíssimo astronauta Neil Armstrong, um segundo humem igualmente sisudo, de seus trinta e poucos anos, igualmente vestindo terno azul escuro e com todo o jeitão de mórmon. Chamava-se Aldous Ray Orwell. Mas a minha atenção se concentrou na terceira representante dos EUA, uma loira exuberante de seus 25 anos, Jackie Blossom, natural da cidade de Casper, Wyoming. Não que eu achasse que essa informação sobre a sua cidade de origem viesse a ter qualquer relevância para a minha missão oficial, mas a verdade é que aquela mulher tinha uma presença muito marcante, a ponto de não me fazer perder um só detalhe do que falava.
Natalie, naturalmente, integrava a comitiva, pois também estava a serviço da CIA — numa missão tão sigilosa que, naquela época, eu mesmo ignorava qual fosse. No entanto, mesmo sabendo que era uma boca-livre, minha garota limitou-se a provar dois ou três pedacinhos de picanha e um pouco de salada verde, deixando metade do prato intecta. Enquanto o mórmon e o astronauta contavam-me detalhes sobre o que nos esperava na cidade de Foz do Iguaçu, eu senti em minhas coxas os dedos dos pés de Jackie Blossom, sentada bem à minha frente. Dissimolada, a jovem agente puxava conversa com Natalie com a maior naturalidade, enquanto os dedos de seus pés deslizavam pela minha canela esquerda.
Constrangido, provavelmente eu não consegui esconder o que estava acontecendo, pois inesperadamente Aldous Ray Orwell me perguntou:
— O senhor está realmente prestando atenção? É muito importante que tenha sempre em mente estas recomendações, estes nomes, pois eles jamais aparecerão escritos em nossos emails e tampouco serão mencionados nas ligações telefônicas.
— Sim, claro — respondi, tomado de surpresa com o puxão de orelha e repeti os nomes que acabara de ouvir: — Assis Alban Sabrer, Señor Jose Silva, Cassino Melodia. Está tudo gravado aqui — e apontei o indicador para a minha cabeça. Mal percebemos que ao menos três homens de terno e duas mulheres em outras mesas olhavam indiscretamente para nossa mesa (ou para as coxas de Jackie Blossom que, conversando com Natalie numa mesa ao lado, erguera sua saia até a altura das cabeças dos fêmures).
— E quanto às armas?
— Apanho no Cassino Melodia — respondi, demonstrando que, a despeito dos artelhos de Jackie, em nenhum momento eu me desconcentrara. Estava disposto a provar de todas as formas que era um agente gabaritado e que a escolha de meu nome não decorrera apenas dos favores de meu tio Eddie. — Mas iremos assim, sem nada, até lá? Sem coletes à prova de bala?
— Dear, este país ainda não está oficialmente em guerra civil — interferiu Jackie Blossom.
— Sessenta mil mortes violentas no ano passado! — retruquei.
— Sugarcube, não seja alarmista. A grande maioria é junto aos pobres, em tiroteios nas favelas. Esse tipo de coisa não acabou em 13 de maio de 1888.
— Mesmo assim, honey — e, voltando-me aos agentes: — Assim que chegamos, vimos os campos de concentração que rodeiam a avenida que leva ao Aeroporto GRU. Foi impossível não perceber que a violência aqui é maior do que em Meddelín, na Colômbia, ou em Johannesburgo, na África do Sul. Uma bala disparada por um assaltante mata da mesma forma que aquela vinda da mira de um terrorista muçulmano. Eu me sentiria se estivésemos com coletes à prova de bala e armados até os dentes. Sem um revólver aqui comigo, não me sinto um verdadeiro homem — e nesse momento lembrei-me do pezinho ousado de Jackie Blossom à procura de meu colt sob a mesa, o que me fez perder o rumo do raciocínio.
— Dearest — disse Neil Armstrong —, amanhã cedo vocês dois estarão embarcando para Foz do Iguaçu neste mesmo aeroporto aqui perto, o CGH.
— E esta região da cidade é pacificada — explicou Jackie Blossom, safada, voltando com Natalie à mesa e repetindo as mesmas carícias, como que procurando certificar-se se realmente eu era um verdadeiro homem. — Vocês estão hospedados na Avenida Paulista que, para os habitantes originários, é algo siminar à Pennsylvania Avenue em termos de segurança e relevância comercial. Nada a ver com a rua onde Natalie foi fazer comprinhas.
— Da Paulista aqui para Congonhas são apenas duas vias expressas — disse o mórmão Orwell. — E vocês estarão sendo acompanhados por nossos seguranças.
Sem nenhuma convicção e apenas procurando um pretexto para prolongar a carícia, insisti:
— Não tenho medo de levar um tiro, meus amigos. Mas sou um agente da CIA, como vocês. E a primeira coisa que aprendi em nosso ofício foi de sempre respeitar o princípio da precaução.
— Sugarcube, levar armas conosco, durante esse trajeto, seria mais do que temerário. Fatalmente levantaria suspeitas de toda ordem. Afinal, nós não estamos indo para aquela região como turistas, mas como pretensos agentes consulares com preocupações estritamente comerciais.
Jackie Blossom, depois de certificar-se, pela consistência rija, que meu comentário a respeito da ausência de armas era apenas uma figura de linguagem, retirou o pezinho e, erguendo-se, disse que iria ao toilette. Antes, porém, pedimos ao garçom para tirar uma foto nossa, para postarmos num grupo de WhatsApp que criamos ali mesmo: "Amigos da CIA no Brasil". Menos pressionado pelas circunstâncias, aquiesci:
— OK, vocês têm razão. Mas, quando chegarmos lá em Foz do Iguaçu...
— ...receberemos nossos equipamentos de proteção individual do Señor Jose Silva — disse Natalie.
— Isso. Do proprietário do Cassino Melodia. Sem maiores delongas.
Postei a foto em nosso novo grupo de WhatsApp e dedicamos o resto do tempo do jantar para falar de amenidades. Aldous Ray Orwell revelou-se um grande contador de histórias. Era o veterano do grupo e havia chegado ao Brasil na época em que os partidos esquerdistas conquistaram o poder na capital do país. Um de seus objetivos de resto compartilhado com mais de duzentos e poucos agentes americanos em atividade no Brasil, era simplesmente de zelar para que as mudanças políticas pelo "Partido dos Trabalhadores" não causassem qualquer desconforto para os investidores de nosso país.
— A relativa intranquilidade no início do primeiro mandato do presidente Lula logo foi dissipada. Estávamos atentos para as movimentações dos ambientalistas. Eles eram os que mais nos incomodavam, principalmente pelo fato de serem verdadeiros watermellons. Vocês sabem, verdes por fora e vermelhos por dentro. Fui a Brasília com a intenção de expressar a nossa preocupação com setores particularmente estratégicos, como o da produção de alimentos. Uma de nossas empresas, a Demonhill Co., que nossa querida Jackie Blossom conhece muito bem... — e dirigiu a ela um olhar cheio de significados ocultos — ..., a Demonhill estava enfrentando alguns constrangimentos absolutamente intoleráveis por conta do pedido de licenças ambientais para a produção de grãos modificados.
Era a primeira vez que o tema dos organismos geneticamente modificados vinha à baila. Aquela referência me surpreendeu. Eu sou da área das Ciências Políticas, nunca entendi lhufas de ADN, tomates inteligentes e espigas de milho superpoderosas.
Capítulo 4
No capítulo anterior eu dizia que Aldous Ray Orwell introduzira em nossa conversa temas alheios à minha especialidade. Até então, para mim, OGMs era uma abreviação de "Oh, God of Mine!". Jackie Blossom, que se sentiu um pouco incomodada por haver sido citada na explanação do colega, interveio:
— Só um parêntese, Aldous, para que nossos novos agentes entendam melhor e não pensem mal de mim. Já disse que sou de Wyoming. A Demonhil é sediada em Casper, minha cidade natal. Foi por conta de indicações do setor de grãos que acabei sendo designada para vir trabalhar no Brasil. Que fique bem claro: defendo neste país os interesses dessa e de outras empresas do setor agrário sediadas em solo americano.
Aldous prosseguiu:
— Me perdoe, Jackie, não omiti intencionalmente essa informação. De qualquer forma, ninguém aqui jamais pensaria mal de você. Como eu dizia, alguns órgãos ambientais, pressionados pelo lobby de organizações internacionais conservacionistas, vinham impondo exigências absurdas à Demonhil para a comercialização de grãos modificados, tais como estudos de impacto ambiental e coisas semelhantes.
— Que prepotência! — exclamou Natalie, com uma peculiar expressão de quem estava sentindo um orgasmo. Estariam os pezinhos da estonteante Jackie acariciando a nós dois? Seria ela bi? Só de pensar na ideia de um ménage, tive uma ereção. Aldous, porém, estava alheio ao nosso mundo sensorial e prosseguiu:
— Havia uma lei, de 1995, que impunha uma série de restrições ao uso de técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados. Nos países aliados à América, sempre defendemos que esse tema não pode de forma alguma ser tratado sob a perspectiva ambiental. É matéria de Agricultura, de Indústria e Comércio, de Ciência e Tecnologia.
— Claaaaaaaaro! — gemeu Natalie, revirando os olhos e fazendo aquele movimento circular involuntário no ombro esquerdo que me deixava doido.
O homem prosseguiu em seu discurso:
— Deixemos para os ambientalistas brasileiros a defesa dos ursos, gorilas, elefantes e zebras. Grãos modificados é assunto para gente adulta. Então precisávamos testar a capacidade de diálogo dos grupos de esquerda que haviam sido eleitos. Nosso primeiro teste foi a liberação da safra de soja transgênica produzida ilegalmente em 2003 no Estado do Rio Grande do Sul. A resistência junto aos Ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário nos preocupava muito. Queriam porque queriam que fosse aplicada a tal lei de 1995, ignorando a inalienável garantia constituição do respeito ao fato consumado, isto é, o fato de que o agronegócio (peço perdão pela expressão mais forte) cagava e andava para aquela leizinha ambiental.
— É que, na prática, a Roundup Ready já estava disseminada nos campos gaúchos — esclareceu Neil Armstrong, o astronauta, que ficara o tempo todo quieto, devorando as linguiças de javali e as fatias de cupim tostado.
— Por intermédio de um deputado de perfil ideológico comunista inquestionável, Hildo Rebolo, conseguimos entrar em contato com as pessoas certas do novo governo do PT. O esquerdista Lula tinha aliados ambientalistas de peso, como os amigos de um tal de Chico Mendes. Graças a esse nosso contato acima de qualquer suspeita, posso dizer que (e aqui peço novamente escusas pelo linguajar rude) o governo abriu literalmente as pernas para nós, fazendo muito mais do que nós mesmos esperávamos. Foi então editada uma medida provisória dizendo, em seu artigo primeiro, que a comercialização da safra de 2003 não estaria sujeita às exigências estabelecidas na tal lei de 1995!
Nesse ponto ninguém na mesa conseguiu conter as gargalhadas. A anedota do agente Orwell serviu para descontrair o ambiente, até então muito tenso, sexualmente falando.
Querendo entender melhor o modus operandi dos deputados comunistas brasileiros, perguntei:
— Diga-me, como é que esse deputado comunista se explicou com os colegas?
— Dearest, da forma mais bizarra! Ele criticou a aplicação do princípio da precaução de forma excessiva, afirmando que isso poderia levar o país a perder oportunidades na área de biotecnologia e comprometer sua soberania agrícola e alimentar. Hildo Rebolo sustentava que a exigência de comprovar a ausência total de riscos nos organismos geneticamente modificados era inviável e que tal postura poderia resultar na entrega do destino biotecnológico brasileiro a empresas multinacionais e a outros países. Mas não temos tempo para contar em detalhes a história agora, pois amanhã cedo vocês embarcarão para Foz do Iguaçu. Jackie Blossom, porém, conhece todas essas histórias de cabo a rabo, aliás bem mais do que eu. Não lhes faltarão oportunidades para conversarem mais longamente.
— Ela vai conosco? — perguntou Natalie, a um só tempo surpresa e claramente incomodada. Apesar dos pés de Jackie serem extremamente hábeis, ela constituía uma ameaça para o nosso relacionamento amoroso. Entre afagos debaixo da mesa de uma churrascaria e um convívio de meses, talvez anos, numa cidade qualquer do oeste paranaense, ia uma longa distância. Não seria um mimo da loiraça durante um jantar de negócios que iria fazer a minha sensual esposa baixar a guarda.
— Não irei imediatamente, querida — respondeu Jackie Blossom com um sorriso fingido. — Mas é claro que estarei lá dentro de alguns dias. Minhas empresas também têm muitos interesses na região da tríplice fronteira.
— Relacionadas com a ameaça de terrorismo?
— Não exatamente, Natalie. Não o tipo de terror que vocês estão pensando. Vocês saberão no momento certo.
Em seguida, Jackie Blossom ergueu-se com a carteira de cigarros na mão e pediu licença para fumar lá fora, pois no Brasil não era permitido fumar dentro de restaurantes.
— Alguém me acompanha?
— Claro! — disse eu, erguendo-me imediatamente, sem olhar para o rosto de Natalie ou dos dois outros agentes. — Também estou doido para fumar.
Na calçada da Avenida Moreira Guimarães, em meio ao ruído dos automóveis em alta velocidade, fumamos os dois sem trocar uma só palavra. Jackie Blossom olhava para mim com súbita indiferença enquanto eu certamente devia demonstrar muita ansiedade, diante das promessas tácteis feitas por debaixo da mesa. Em minha cabeça não passava qualquer dúvida, minhas coxas, minha virilha, meu colt ainda sentiam aqueles pés me acariciando em meio à sequência de carnes e linguiças que eram servidas à mesa. Quase no fim do cigarro, criei coragem e lhe perguntei:
— Quando nos veremos de novo, Jackie?
Guilherme Purvin é escritor e ambientalista.