- Guilherme Purvin
Os Três Reis Magos
Reli ontem, dia 15 de novembro de 2023, os originais datilografados de "Os Três Reis Magos", uma peça de teatro que concluí em 19 de junho de 1982. Infelizmente, eram tempos de mudança de vida: havia concluído o curso de Direito e obtido a carteira da OAB. Com novo emprego, não conseguia mais prosseguir no curso de Jornalismo na ECA-USP e perdia o contato com os amigos dos dois grupos de teatro com quem trabalhei (a turma de "Vamos comer pedregulhos?" e de "O fantasma de Magali Bertée"). Por isso, esta peça nunca chegou a ser encenada ou mesmo lida em grupo. Nesta releitura que fiz, decorridos 41 anos da elaboração da peça, deparei com questões de absoluta atualidade, retratadas no filme "Não olhe para o alto" - tudo, porém, com um toque oswaldiano: uma comédia distópica sobre a empresa Mercadobrás - Manipulação de Dados S/A e Trata-se de uma distopia cômica, onde seus dirigentes buscam safar-se da destruição da vida no Planeta Terra em razão de contaminação radioativa. Faltaria apenas falar sobre degradação da biodiversidade e mudanças climáticas, mas esse assunto, em tempos de governo João Baptista Figueiredo, não estava ainda em pauta. Vou postar aqui, por alguns dias, o primeiro ato da peça, para quem tiver interesse em conhecer um pouco de meus trabalhos na área da dramaturgia. Caso haja leitores curiosos (que poderão dar um "like"), postarei mais tarde os outros dois atos.
Guilherme Purvin
Os três reis magos
Peça em 3 atos
Guilherme Purvin
S.Paulo, 19/6/1982
1º ATO
Personagens (por ordem de aparição no 1º ato):
Dr. Romero – Diretor do Departamento de Pessoal
Valdirene – Secretária do Dr. Romero
Luzia – Postulante a um emprego
Burrinho Manquitola – Esposa do Dr. Romero
Edi – Funcionário da MPD S/A
Quinzinho – Astronauta
Francisco– Astronauta
Filhinha
Papai
Cenário:
Uma saleta típica de repartição pública antiga, com duas mesas, ocupa o terço central do palco. Numa delas está sentado o Dr. Romero, lendo jornal. Na outra, Valdirene pinta as unhas. Na parede ao fundo, um poster do Presidente João Batista Figueiredo. A sala é separada do resto do palco por um balcão. Ao alto, o letreiro: “Mercadobrás – Manipulação de Dados S/A.”
No terço esquerdo do palco, uma via pública, com calçada e pequeno movimento de automóveis. Na calçada oposta à parede do prédio da repartição há um ponto de ônibus com um banco onde Luzia lê jornal.
O terço direito do palco é o interior de uma nave espacial, onde dois astronautas Quinzinho e Francisco acionam botões e verificam os números dos painéis. As cenas neste espaço se passam no futuro.
CENA 1
No Departamento de Pessoal da Mercadobrás.
DR. ROMERO (gesticulando enquanto lê o jornal): Essa é boa! (Valdirene abaixa o pincel do esmalte e olha para o chefe, sem entender). Essa é realmente muito boa
VALDIRENE: É mesmo, doutor! Muito boa! Nesse mesmo diapasão, o senhor vai requisitar um substituto para o Setor de Revisão Tecnológica?
DR. ROMERO (continuando a ler): Como é que pode?! (sua expressão risonha começa a transmudar, tornando-se séria e preocupada) Isso não está certo!...
VALDIRENE (guardando o esmalte na gaveta): E não está mesmo! Seguindo essa linha de raciocínio, doutor Romero, o senhor... Doutor Romero?
DR. ROMERO (impaciente): Valdirene, antes que eu me esqueça, mande o Edi pintar uma plaqueta para pendurar na frente do prédio: “Precisa-se de revisor tecnológico”. E diga para ele não errar desta vez na ortografia. É “tec-no-ló-gi-co” e não “tequinicológico”.
VALDIRENE (prestativa): Sim, senhor! (apanha o telefone e disca) Seu Edi, o Dr. Romero mandou pintar uma placa: “Precisa-se de Revisor Tecnológico”. É para ser colocado na frente do prédio, lá onde passam os operários. Como? Não, não, seu Edi! É “tec-no-ló-gi-co”. E é pra fazer agora mesmo!
DR. ROMERO (ensimesmado com a leitura): Talvez tenha sido melhor assim. (sem levantar os olhos) O que você acha, Valdirene?
VALDIRENE (ergue-se, solícita, e caminha em direção ao chefe): Concordo com o senhor, indubitavelmente, Dr. Romero. No caso, é a respeito de que, Dr. Romero?
DR. ROMERO: Leia isto (indica uma página do jornal).
VALDIRENE (lendo com desenvoltura): Na tarde de ontem, em Nova York, um louco que se dizia ser o Rei Mago Melquior foi brutalmente assassinado por um líder mafioso de passagem pela cidade. O episódio ocorreu após um entrevero diante do touro da Wall Street, quando a vítima teria dito ao mafioso Luigino Stromboli que a Torre de Pisa não duraria mais dez anos de pé. Acreditando que o pseudo Melquior aludia a uma provável queda da Máfia, o mafioso esfaqueou o mitológico personagem de presépio natalino.
DR. ROMERO (retirando abruptamente o jornal das mãos de Valdirene): Basta. Volte ao serviço, Valdirene. Depois você terá tempo de ler tudo com mais vagar.
VALDIRENE: Sim, Dr. Romero. Mas já adianto que concordo, talvez tenha sido melhor assim. (pausa) Dr. Romero?
DR. ROMERO (cordial): Pois não, Valdirene?
VALDIRENE: Esse jornal, New York Times...
DR. ROMERO: O que tem este jornal?
VALDIRENE: Eu nunca ouvi falar desse jornal.
DR. ROMERO: E daí? Você não é obrigada a conhecer todos os jornais do mundo.
VALDIRENE: Quer dizer... Nada, não. Não é nada, desculpe-me, Dr. Romero.
DR. ROMERO: Vamos, Valdirene, diga o que está pensando! Não quero segredos entre nós.
VALDIRENE: Bobagem minha, Dr. Romero. É que eu meditava a respeito das reflexões de Adorno e Horkheimer sobre o Esclarecimento como Mistificação das Massas. Então eu pensei se não seria interessante a gente colocar um anúncio de “Procura-se Revisor Tecnológico”, não nos classificados do New York Times, mas em alguma resenha de cinema.
DR. ROMERO: Tolice, Valdirene. Nenhum trabalhador residente em Nova York se daria ao trabalho de vir até São Paulo para trabalhar de revisor tecnológico, ainda mais com salário que oferecemos.
VALDIRENE: Verdade, Dr. Romero, tolice minha. Alguma outra tarefa especial para hoje?
CENA 2
Na rua
Luzes para a rua no terço esquerdo do palco. Luzia folheia um jornal e o rabisca com uma caneta. Edi, funcionário da Mercadobrás, afixa numa parede próxima à porta de entrada, a placa “Precisa-se de revisor tecnológico”.
LUZIA: Hum, auxiliar de sonegação... Não... Hermeneuta contábil, escritório em Seicheles, longe demais de casa... Técnico em raios cósmicos parece interessante... ah, precisa ter segundo grau completo!
Um Burrinho Manquitola passa ao largo do prédio, olhando atentamente para suas portas e paredes. Luzia abaixa os olhos de seu jornal e observa o burrinho.
LUZIA: Que burrinho manquitola curioso! De onde ele veio? Para onde ele vai? São perguntas para as quais provavelmente eu jamais terei resposta, acho eu. (Coloca o jornal em sua bolsa e levanta-se para ler a placa). Ei, moço!
EDI: É comigo, dona?
LUZIA: O que é revisor tecnológico?
EDI (estranhando a pergunta): Como? Revisor tequinicológico? Não sei não, dona. Foi a dona Valdirene que mandou eu desenhar essas letras.
LUZIA: A sua empresa está oferecendo essa vaga. Sabe me dizer onde é que eu me apresento para pedir o emprego?
EDI: Emprego é direto lá no Departamento de Pessoal. É revisor o quê mesmo que está escrito na placa?
LUZIA: Está escrito: “Precisa-se de Revisor Tecnológico”. Eu posso entrar na firma?
EDI: Por mim, pode. Não sou porteiro nem vigia.
LUZIA: Obrigada. Um bom dia para o senhor.
EDI: Edi. Pode me chamar de Edi mesmo. Bom dia, dona. E boa sorte.
LUZIA: Luzia. Pode me chamar de Luzia. Obrigada, vou precisar de sorte mesmo.
EDI (dando alguns retoques na afixação da placa): Diabo, o que será isso de revisor tequinicológico? Eu aqui, na maior das inocências, fazendo o que a dona Valdirene mandou fazer, mas sem saber do que se trata. Se ela tivesse me mandado colocar uma placa dizendo que todo mundo que passa por esta rua é ladrão, eu ia acabar apanhando sem saber o motivo. É duro ser alfabetizado, mas não ter dicionário.
Passa uma menininha correndo pela rua, em direção ao auditório. Edi observa. Em seguida, vem o pai dela, gesticulando bastante.
PAI: Ei, ei, espere! Sou o seu pai, não tenha medo de mim!
EDI (desce da escada e corre atrás do pai): Ei, ei, espere! Você é espectador, não pode correr pelo palco!
CENA 3
No interior da cápsula espacial. Francisco, Joaquinzinho e uma voz de rádio.
RÁDIO: Atenção, astronautas Francisco e Quinzinho! Esta deverá ser a última mensagem do comando. Os ventos radioativos se encontram a apenas cinco minutos desta estação. A Central Meteorológica já informou que não há possibilidade de mudança na direção desses ventos. A mídia eletrônica entretém o povo com uma história irrelevante a respeito de um rei mago assassinado em Wall Street. Quais são os informes até o momento?
FRANCISCO: Passados sete minutos e trinta segundos do início da descida. Altitude, dezesseis mil e trezentos pés.
RÁDIO: Dê a leitura do tanque dois.
FRANCISCO (olhando para o painel): Cento e quatro.
RÁDIO: Gasolina aditivada ou comum?
FRANCISCO: Aditivada.
RÁDIO: Perfeito. Atenção. Vocês parecem estar muito bem neste momento em que o cronômetro marca oito minutos depois do começo da descida.
QUINZINHO: Velocidade de descida, 128 pés por segundo.
RÁDIO: Certo. Confere aqui também.
FRANCISCO: Alô, Comando. Minha esposa está aí por perto?
O rádio começa a chiar. Muito ruído de interferência eletrônica. Francisco soca o aparelho.
QUINZINHO: Cuidado! É um aparelho sofisticado! O vento deve ter chegado antes do momento previsto.
FRANCISCO (solenemente): Muito bem, Quinzinho. Isso significa que nós somos os últimos sobreviventes da espécie humana no universo.
QUINZINHO: Pois é, Comandante Francisco. Enfim a sós no cosmos!
FRANCISCO: Que merda.
CENA 4
No Departamento de Pessoal. Valdirene datilografa e Dr. Romero rabisca alguns papéis em sua mesa. Luzia aparece do outro lado do balcão e pigarreia para chamar a atenção.
VALDIRENE: Pois não?
LUZIA: Bom dia. É que eu li a placa lá fora.
VALDIRENE (simulando ostensivamente desatenção): Placa? Que placa?
LUZIA: Uma placa dizendo “precisa-se de revisor tecnológico”. Eu gostaria de obter maiores informações a esse respeito.
VALDIRENE: Você conhece Walter Benjamin?
LUZIA (confusa): Como? Walter quem?
VALDIRENE (gira o corpo de volta para a frente de sua mesa): Já vi tudo. Queira aguardar um minutinho.
Valdirene continua a datilografar. Depois tira a folha de papel da máquina, guarda-a calmamente em sua gaveta. Olha para suas unhas, sopra-as e as alisa em sua blusa. Depois ergue-se e caminha displicentemente em direção ao seu chefe.
VALDIRENE: Doutor Romero...
DR. ROMERO: Diga.
VALDIRENE: Dr. Romero, tem uma moça aí procurando emprego de revisora (enfática) tequinicológica...
DR. ROMERO (larga a caneta e olha para Luzia, no balcão):Ah, sim. Mande esperar um pouco, sim? Agora estou ocupado.
VALDIRENE: Pois não, Dr. Romero. (A Luzia) O Dr. Romero já vai atender. Espere um pouco.
LUZIA (esboçando um sorriso): Obrigada. Não tem pressa não.
Dr. Romero começa a assobiar uma melodia qualquer.
VALDIRENE (subitamente atenciosa, dirige-se ao balcão): A senhora é casada?
LUZIA: Não. Precisa ser?
VALDIRENE (rindo): Não, não! É até melhor que seja solteira mesmo. Tem noivo? Alguém em vista?
LUZIA: Noivo, noivo mesmo, ainda não. Mas tenho um namorado. O Ricardo. Ele é muito bom para mim.
VALDIRENE: Ele trabalha?
LUZIA: Trabalhar, ele trabalha. Mas não como as pessoas comuns. Ele é um líder revolucionário. Trabalha por uma causa maior.
VALDIRENE (colocando a mão em concha, confidencialmente): Sabe, eu também tenho um ótimo namorado. Mas, aqui, na Mercadobrás, os chefes não deixam os namorados das funcionárias esperá-las na saída. Isso está proibido.
LUZIA: Proibido? Por quê?
VALDIRENE: Ai, nem te conto! Está proibido desde o ano passado, quando veio o namorado da Ana, uma antiga funcionária da empresa, esperá-la na saída. Menina, ele estava bêbado de dar dó! Implicou com um chefe setorista. Justamente o chefe daquela funcionária. Falou atravessado com ele e foi um bafafá dos diabos.
LUZIA: Virgem santíssima! E o que foi que aconteceu?
VALDIRENE: Olhe, que fique entre nós, hein?
LUZIA: Pode confiar em mim.
VALDIRENE: O bêbado foi espancado pelos homens de segurança da empresa. Quase morreu. Depois ele entrou na justiça. Mas contra a vontade da Ana, que não queria confusão pro lado dela, senão ela seria despedida. O processo está correndo até hoje.
LUZIA: Também, né? Esperar a namorada bêbado! Não podia ter outra sorte. Ainda bem que o meu namorado é trabalhador, honesto, sem vícios...
VALDIRENE: Agora a senhora me dá licença, que eu preciso terminar minhas tarefas.
LUZIA: Ah, pois não. Fique à vontade.
VALDIRENE: A sua graça?
LUZIA: Minha graça?
VALDIRENE: Seu nome.
LUZIA: Ah, é Luzia Silva!
VALDIRENE (dá dois beijos no rosto de Luzia): Prazer, querida. Eu sou a Valdirene Soares, ao seu dispor. Boa sorte. Tenho certeza de que você vai passar no teste. Mas não fale nada que é namorada de um líder revolucionário. Isso não pega bem aqui.
LUZIA: Deus de ouça. E obrigada pela dica, meu bem.
Valdirene volta a datilografar. Luzia olha ao redor do escritório, procurando se familiarizar com o ambiente. Dr. Romero dirige-se a Luzia, que continua do outro lado do balcão.
DR. ROMERO (sério e solícito): Pois não, madame?
LUZIA (meio sem jeito): Bom dia...
DR. ROMERO (sempre interrompendo): Bom dia, bom dia. Pois não?
LUZIA: Sabe o que é...
DR. ROMERO: Não, não sei. O que é?
LUZIA: É que eu estava passando pela rua...
DR. ROMERO: Passando pela rua? Entendo... É uma transeunte. E então?
LUZIA: É. Eu estava passando pela rua e vi um moço colocando um cartaz dizendo que havia vagas para revisor tecnológico...
DR. ROMERO: Revisor tecnológico. Tec-no-ló-gi-co. Não é “tequinicológico”. Mas prossiga, você viu a placa. E o que está fazendo aqui agora?
LUZIA: Então, eu queria saber do que se trata.
DR. ROMERO: A senhora... Qual é sua graça?
LUZIA: Luzia Silva, às suas ordens.
DR. ROMERO: Muito bem, dona Luzia Silva. Acho que entendi o que deseja. Na verdade, a senhora deve estar postulando a vaga oferecida.
LUZIA: Isso mesmo!
DR. ROMERO: Da próxima vez, seja mais objetiva, dona Luzia Silva. Vamos verificar cuidadosamente seu curriculum vitae. Queira ter a fineza de vir até à minha mesa. A senhorita Valdirene irá destravar o balcão para que entre.
Valdirene ergue a tábua do balcão para que Luzia entre. Depois abaixa-o novamente e volta à sua mesa.
DR. ROMERO (para Luzia): Nível Escolar?
LUZIA: Bom, eu tenho o Primário Completo e fiz até a terceira série do Ginásio. Mas agora é tudo junto, né? É primeiro grau que se diz...
DR. ROMERO: Não vamos discutir a política educacional do governo agora. Por mim, continuaria tendo Primário até o quinto ano. Sempre fui contra o exame de admissão. Madureza então, acho um absurdo! Deveria se chamar “uma moleza”, é atalho para vagabundo que não estudou! De qualquer forma, para o cargo de Revisor Tecnológico, só é necessário que o aspirante ao cargo saiba contar até seis. E isso aprende-se no primeiro ano, não é mesmo?
LUZIA: Sim, senhor. Desculpe por ser tão prolixa.
DR. ROMERO: Tem experiência no ofício?
LUZIA: Não sei direito. Pode ser, talvez já tenha feito o que é exigido, mas num cargo com outro nome. Quais são as tarefas de um revisor tecnológico?
DR. ROMERO: Não é “tequinicológico”, é “tecnológico”. A senhora está desempregada?
LUZIA: Mas eu disse “tecnológico”!
DR. ROMERO: Sim ou não?
LUZIA: Sim, estou desempregada.
DR. ROMERO: Despedida por justa causa?
LUZIA (orgulhosa): Sim, senhor. Despedida por uma causa muito justa! Se há uma coisa que eu não toleraria seria injustiça!
Toca o telefone. Valdirene atende.
DR. ROMERO: Nesse caso, pode começar hoje. Trouxe a carteira de trabalho?
VALDIRENE: Doutor Romero, é a sua esposa ao telefone!
LUZIA (procurando na bolsa): Sim, senhor. Ela estava aqui mesmo... Meu Deus, onde é que ela foi parar?
DR. ROMERO (atendendo o telefone): Alô, amor? Sim. Espere um pouquinho, amor. (A Luzia) Se não tiver, não faz mal. Pode ser a identidade.
Edi aparece no balcão.
LUZIA: A identidade? Sim, tome. (entrega o documento)
DR. ROMERO (ao telefone): Oi amor. Como, amor? Não, não, você deve estar enganada. Pois se eu estou aqui, falando com você! Como é que posso estar em dois lugares ao mesmo tempo? Num Galaxie? E você fica na rua, olhando para o interior de todo automóvel que passa?
EDI: Dona Valdirene, preciso falar uma coisa importante!
DR. ROMERO (ao telefone): Um minutinho, amor. (para Valdirene) Dona Valdirene Soares, encaminha a dona... (lê o documento) a dona Luzia Silva para o Setor de Revisão Tecnológica.
VALDIRENE: Pois não, doutor Romero.
DR. ROMERO: Depressa, dona Valdirene. E vê o que o Edi quer.
Valdirene vai até o balcão. Luzia se levanta e tenta cumprimentar o Dr. Romero, que não lhe dá atenção, procurando justificar-se perante a esposa ao telefone.
DR. ROMERO: Mas meu amor, pense um pouco! Isso que você está dizendo não tem a menor lógica! Como? Mas meu bem, como é que você pode achar que está falando com a gravação da secretária eletrônica se eu estou respondendo a todas as suas perguntas?
EDI: Dona Valdirene, é sobre o seu Francisco, o Chico Astronauta. Não é por nada não...
VALDIRENE: Seu Edi, será que o senhor não poderia passar depois do expediente? Não vê que eu estou ocupada e que não é hora para ficar fofocando? (a Luzia) Vamos, dona Luzia. Você vai conhecer a nova seção. E o senhor, seu Edi, pode retirar a placa que acabou de colocar na frente da empresa, que já foi preenchida a vaga.
LUZIA: Puxa, a entrevista foi tão rápida!
VALDIRENE: Estava escrito nas estrelas. O cargo era seu.
DR. ROMERO (ao telefone): Eu posso lhe garantir isso, amor. Deve ter sido algum sósia meu! E como era a acompanhante? Ah, meu amor! Pois se a dona Valdirene estava aqui até há pouco! Meu bem, não se exalte! Quer falar com ela agora? Mas se foi ela quem atendeu ao seu chamado! Ela acabou de dar uma saidinha, amor, foi levar uma nova funcionária para conhecer o seu setor. Não grite, meu amor! Eu não estou inventando! (toca outro telefone). Espere um pouco, benzinho. (atende o fone 2). Pois não? Ah sim, presidente! Certamente! Irei agora mesmo! Até já! (desliga o Fone 2 e volta ao Fone 1) Meu bem, o presidente da Mercadobrás – Manipulação de Dados S/A em pessoa acabou de me ligar e está me convocando para uma reunião de diretoria. Como? Claro que você é mais importante do que ele, meu bem! Mas eu não posso deixá-lo esperar só porque você sonhou ter me visto num Galaxie com a dona Valdirene. Não, meu benzinho, benzinho do meu coração, tente entender...
CENA 5
No interior da cápsula espacial
FRANCISCO: Puxe o breque, tenente Quinzinho. Estamos pousando numa velocidade muito alta.
QUINZINHO: É emocionante! Nem a família Robinson, do seriado Perdidos no Espaço, conseguiu esse feito! Só espero que aqueles incompetentes da Barreira do Inferno não tenham...
FRANCISCO (cortante): Incompetentes?! Modere o tom, tenente Quinzinho! Eu ainda sou o comandante aqui. Lembre-se das aulas de Hierarquia Militar no Espaço Cósmico.
QUINZINHO: Desculpe, Comandante. É que eu pensei que, como estávamos isolados do nosso tempo, de nossa terra, numa região onde nunca mais surgirá nenhuma autoridade, eu poderia...
FRANCISCO (cortando novamente): Nenhuma autoridade?! O fato de nós dois sermos os últimos seres vivos do universo não significa que eu tenha perdido o meu posto de Coronel da Força Espacial da República Federativa do BrasiL!
Quinzinho olha para os painéis da cápsula.
QUINZINHO: Preparar para o pouso!
FRANCISCO: Não interrompa o meu discurso, soldado!
Ouve-se o ruído do impacto da nave no solo do planeta inexplorado. Francisco cai no chão.
QUINZINHO: Eu avisei para se preparar para o pouso, comandante!
FRANCISCO: Você será punido por isso, seu incompetente!
Fim do 1º Ato