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  • Guilherme Purvin

O melhor amigo do homem

- G. J. P. de Figueiredo -


Certa manhã Fiodor Byxby acordou e, ao bocejar, uivou. Saltou da cama e notou que estava andando de quatro. Como não conseguia abrir a porta de seu quarto, começou a ganir desesperadamente, batendo as patas dianteiras na porta. Só quando a empregada abriu é que a humanidade deu conta da nova situação de Byxby: agora ele era um cão. Com certeza, não poderia mais viver naquela casa. Ele mesmo, quando ainda era homem, mostrava-se contrário à ideia de se criar um cão dentro de casa. Eles sempre dão trabalho e sujam tudo. A empregada estranhou a presença do cãozinho no quarto do filho da patroa e, surpresa, exclamou com alegria:

— Mais uma brincadeira de Fiodor!

O cão desceu as escadas e passou pela cozinha, onde sua mãe tomava café da manhã. Ao vê-lo, a mulher gritou:

— Xô! Passa, vira-lata!

Pegou uma vassoura e o expulsou dali. Byxby pensou: “ainda bem que não me transformei numa barata” e tomou a única decisão possível. Sairia de uma casa onde parasitara durante todos aqueles anos. Há muito que planejava abandonar a família. Agora, andaria errante pela rua.

Subiu uma ladeira e andou pela avenida principal do bairro. Não estava ainda acostumado com a ideia de andar de quatro e, por isso, não sabia correr nem sincronizar os movimentos. Essa deficiência seria corrigida com o tempo, caso não voltasse a ser homem. Ao atravessar uma rua perpendicular, cruzou com seu irmão Alexei e latiu para ele, abanando o rabo. Alexei, seu único amigo na família, não o reconheceu. Limitou-se a afagá-lo rapidamente. Byxby pensou em segui-lo mas desistiu, não queria voltar para casa. Deu meia volta e latiu para o jornaleiro. Ainda na véspera havia comprado duas revistas e um jornal com ele, gastara quarenta e cinco cruzeiros. O jornaleiro sorriu e levantou-se do banquinho para agradá-lo. Byxby abaixou a cabeça, apreciando o afago. Em seguida, recuou, envergonhado. Era ridículo receber afagos de um jornaleiro! Desceu uma rua imunda que levava à parte mais pobre do bairro. Em outras ocasiões, não teria tido coragem de ir para ali sozinho. Mas o que teria a perder agora? Já com maior controle sobre as patas, ensaiou uma corrida e foi razoavelmente bem-sucedido. Olhou para a frente e viu diversas pernas. Três putas brigavam à toa e a mais bonita dizia:

— Alzira, não vá dar uma de sabichona que eu sei que você é que me roubou!

— Eu lá quero saber de pegar dinheiro de uma fedida? — retrucou a tal Alzira, uma baixinha atracada.

— Fedida é a vaca da tua mãe, sua putana de merda!

A briga ia longe se Byxby não latisse. Alzira, depois de um grito, desembestou pensão adentro. A mais bonita olhou para o cão, agachou-se e passou a mão em seus pelos. Gritou:

— Tia, vem ver que pequinês bonitinho!

Byxby corou. Justo um pequinês? Por que não um cão-de-fila, um doberman, um dinamarquês? A outra moça, que assistira à briga, comentou:

— Se a tia deixasse a gente criar o bichinho...

— Você acha que ela deixa, Suzy?

— Ah, Patrícia! Você conhece a tia!

Fiodor Byxby deixava-se afagar e sentia o calor de suas pernas no focinho. Não resistindo ao desejo, subiu em seu joelho esquerdo e Patrícia disse:

— Olha só o sem-vergonha!

Byxby abanou o rabo, mas levou um pontapé de Patrícia. Correu. Chutado por uma puta, ladeira abaixo. E ainda por cima na condição de pequinês! Lentamente, deveria esquecer-se de que um dia havia sido homem. Mas não seria fácil eliminar os vestígios. Teria que abandoná-los naquela mesma tarde. Seguiria rumo aleatório. Voltou o rosto para trás. As putas já não estavam ali.

Passaram-se algumas horas. Já estava em outro bairro e começava a sentir fome. Procurou dinheiro no bolso para comprar um sanduíche e riu de seu próprio gesto: havia se coçado! Coçou-se mais um pouquinho e vadiou por ruas e avenidas da zona fabril da cidade. Parou defronte a um bar e olhou para os operários, que comiam arroz, feijão, ovo e salada. Poderiam estar comendo um bife, mas é lógico que eles nunca lhe dariam um pedaço de carne. Talvez um osso. Esperou. As sirenes das fábricas tocaram e Byxby não ganhou nada. Latiu. O dono do bar enxotou-o dali, como um perreiro de igreja. Atirou um pão velho em sua direção. Byxby cheirou o pão e desprezou-o. Não iria saciar a fome com aquilo. Tinha uma dignidade. Prosseguiu faminto, até chegar em outro bairro. Já eram três da tarde e, se não conseguisse nada, teria que chafurdar o lixo. Bebeu um pouco de água que escorria da mangueira de uma casa. Byxby, quando homem, levara mais de dois anos para aprender a beber água sozinho. Como cão, era hábil, inteligente, desinibido. A empregada que regava o jardim olhou para ele, colocou a água numa lata vazia de cera de soalho e chamou-o. Byxby bebeu com vontade e latiu, agradecido. Não saiu dali, talvez conseguisse comida.

— Coitado, o Totó deve estar com fome!

A moça fechou a torneira e entrou em sua casa, em busca de comida. Mas Byxby não compreendeu seu gesto e foi embora. Correu de volta para seu bairro antigo, parou diante de um poste, cheirou-o e urinou, com a pata traseira apoiada nele. Passou de novo defronte ao bar, viu o pão velho intacto e o devorou. Homem não dá bifes aos cães. Só ossos raspados. Às seis da tarde ouviu as sirenes, viu os operários saindo para as suas casas, descansou. Um operário abriu a marmita e despejou no chão alguns grãos de arroz, feijão, fiapos de couve cozida. Byxby lambeu o chão, latiu e acompanhou o operário, que parou num ponto de ônibus.

— Que foi, cachorrinho? Quer ir comigo para casa? – Byxby latiu, tentando se fazer compreender. — Não? Ah, você deve ser cachorro de madame. Pequinês é cachorro de madame velha.

Não, Byxby não tinha casa, não tinha uma velha que cuidasse dele, mas não conseguiu dizer isso ao operário. Veio o ônibus e o trabalhador foi embora. A cidade se esvaziava, as luzes das casas eram acesas. Atravessou a ponte e olhou para o rio, carregando garrafas vazias, sacos plásticos, entulho irreconhecível. Era uma espécie de filme, aquele rio. Alcançou o outro lado da avenida e viu novamente a pensão. Lá estavam Patrícia, Suzy e Alzira. Maquiadas, encostadas numa mureta. Patrícia anunciou:

— Vejam só o nosso amiguinho de novo!

— Coitado, não tem dono — disse Suzy.

— Tem sim, Suzy. É pequinês! – respondeu Alzira.

— Ele é tarado, Alzira – disse Suzy.

— Estou acostumada – disse Alzira, colocando-o no colo. — Você é tarado, Totó? Quer ser meu mascote, dar umas lambidas em mim?

Byxby abanava o rabo, olhando para Alzira. Patrícia o havia chutado, mas Alzira era boa com ele. Os operários também. Os carros paravam, descia um homem e levava uma moça. Depois, outro carro e outra moça. Até que Alzira também entrou num carro. Já não se lembrava de Byxby. E ele se sentiu só. Voltaria para casa. Dobrou a esquina. O jornaleiro também era bom. Uma viatura policial em sua casa. Estava sumido. Foi para a cozinha e comeu linguiças. Depois se refugiou num canto do jardim e dormiu.

— Entrou um cachorro aqui. Vejam essas marcas na toalha! Deve ser aquele pequinês que apareceu hoje cedo!

Byxby apenas dormiu, sem sonhar. Não tinha pesadelos nem culpas. Na manhã seguinte, porém, acordou todo sujo de barro. Tomou um banho e, depois de ouvir as reclamações da família a respeito de seu sumiço no dia anterior, correu para o trabalho. No escritório, o esperava a elaboração da defesa judicial de uma empresa que não pagava as horas extras de seus empregados.


S.Paulo, 14 de janeiro de 1977

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