Guilherme Purvin
Venho da sessão das 20h da sexta-feira, dia 7/12/2024, da peça teatral “Vestido de noiva”. Confesso que sou fã de Clarisse Abujamra desde os tempos em que formava uma dupla apaixonada e inseparável com Antonio Fagundes no programa É Proibido Colar — o exemplo vivo do casal perfeito, a comprovar as teses da Igreja Católica (casamento que se desfez, aliás, em 1988); e, mais ainda, de Lucélia Santos, para sempre na memória afetiva da minha geração a revolucionária atriz que ousou bater de frente com a Rede Globo, na condição de fenômeno mundial que angariara um exército de corações apaixonados em toda a China, em Cuba, na União Soviética, na América Latina.
Corri para adquirir os ingressos ao me deparar com os nomes dessas duas figuras icônicas no elenco desta montagem, e ainda por cima dirigidas por Helena Ignez, a mesma que atuou em filmes como Assalto ao Trem Pagador (1962), O Padre e a Moça (1966), em O Bandido da Luz Vermelha (1968) e no inigualável A Mulher de Todos se revelou uma gigante do cinema brasileiro. Só consegui entradas para uma das últimas apresentações da temporada, que durou de 25/10 a 8/12/2024.
É Helena Ignez quem revela a gênese deste projeto teatral:
“Anos atrás, Lucélia Santos sugeriu, por meio de Djin (minha filha, com quem Lucélia trabalhou no filme Mulher Oceano, dirigido por Djin Sganzerla) montar a peça Vestido de Noiva com ela fazendo Madame Clessi. Achei incrível essa sugestão e pensei que, em comum com Lucélia, nós tínhamos uma coisa antes de tudo: amávamos Nelson Rodrigues. Ela, performando vários de seus filmes".
Lucélia Santos tem uma larga experiência na interpretação de personagens criadas por Nelson Rodrigues, não só no cinema como também no teatro. Para falar apenas de alguns trabalhos, lembro que, em 1981, atuou em dois filmes baseados em Nelson Rodrigues. Foi “Engraçadinha”, no filme homônimo dirigido por Haroldo Marinho Barbosa — com o qual obteve o Prêmio de Melhor Atriz no XIV Festival de Brasília daquele ano. E, em “Bonitinha, Mas Ordinária ou Otto Lara Rezende”, dirigido por filme de Braz Chediak, foi a protagonista. Em montagem de 2012 da peça “A Falecida”, interpretou Zulmira, dirigida por Marco Antônio Braz.
Nelson Rodrigues é um nome praticamente desconhecido pelas gerações atuais — inclusive no meio acadêmico. E isso se deve, sobretudo, à briga que comprou com a esquerda brasileira, a quem nunca poupou. Sua obra, porém, é infinitamente superior a quaisquer comentários políticos medíocres que eventualmente tenha emitido nesse período cinzento de nossa história. Nesse sentido, pode-se dizer que teve o mesmo destino que Jorge Luis Borges. De fato, o genial contista e poeta argentino, execrado por uma geração que exigia escritores comprometidos com a luta contra as ditaduras militares na América Latina, era ainda assim o mais revolucionário nome da literatura em nosso continente.
Da mesma forma, no teatro brasileiro, embora possamos citar diversos grandes dramaturgos que, com sua arte, combateram o regime (Oduvaldo Vianna Filho, Consuelo de Castro, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Chico Buarque, Dias Gomes), dificilmente um estudo sério da história da nossa dramaturgia poderá dizer que algum deles tenha proposto alguma forma de teatro tão revolucionária quanto Nelson Rodrigues. Antes dele, o que tínhamos era Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Martins Pena, Arthur Azevedo e, digamos, Oswald de Andrade — que não foi além da genial peça O Rei da Vela: A Morta e O Homem e o Cavalo não ombreiam a peça que se tornou célebre no país a partir da montagem de José Celso Martinez Correia, com cenários de Hélio Eichbauer. Deixo de citar as peças escritas em francês em parceria com Guilherme de Almeida 21 anos antes de O Rei da Vela. Vale lembrar que Vestido de Noiva estreou em 28 de dezembro de 1943, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ou seja, 24 anos antes da estreia da peça de Oswald pelo Teatro Oficina.
O autor de “Vestido de noiva”, “Viúva, porém honesta”, “Álbum de família”, “Perdoa-me por me traíres”, “Os sete gatinhos”, “O beijo no asfalto” e “Toda nudez será castigada” foi sobretudo um grande reacionário: negava que houvesse tortura no Brasil. Dizia que tudo isso não passava de mentiras da esquerda destinadas a desestruturar o governo militar de 1964. Considerando que Nelson Rodrigues era um homem culto e inteligente, não há como defender sua postura sob a alegação de ignorância política ou incapacidade de compreensão da realidade nacional. Eis algumas frases suas:
· “Sou um reacionário porque valorizo a liberdade, porque não sou stalinista. Os comunistas dizem que o comunismo é o futuro. Se é assim, então eu sou o passado, sou a reação, sou a Idade Média.”
· “Eu sou anticomunista desde os onze anos. E assumo minhas posições, mesmo quando, hoje, o intelectual virou esquerda porque essa é uma maneira de o sujeito ser inteligente, de ser atual, de ser moderno e, principalmente, de se banhar na própria vaidade.”
· “A Rússia, a China e Cuba são nações que assassinaram todas as liberdades, todos os direitos humanos, que desumanizaram o homem e o transformaram no anti-homem, na antipessoa. A história socialista é um gigantesco mural de sangue e excremento.”
· “Eu amo a juventude como tal. O que eu abomino é o jovem idiota, o jovem inepto, que escreve nas paredes ‘É proibido proibir’ e carrega cartazes de Lenin, Mao, Guevara e Fidel, autores de proibições mais brutais.”
As citações foram colhidas do “imparcial” site do Instituto Liberal. A história, porém, mudaria para ele, quando seu filho Nelson Rodrigues Filho, um militante do MR-8, foi preso sob a acusação de terrorismo, tendo sido anistiado somente em 1979.
Mas o dramaturgo e cronista poderia ter morrido sem nenhuma crítica aos militares e, ainda assim, uma peça como “Vestido de Noiva” continuaria sendo uma obra-prima ou, mais do que isso, sendo a obra que realmente inaugurou a dramaturgia brasileira. A partir de sua encenação, finalmente o Brasil apresentava para o mundo uma peça autenticamente brasileira. E isso sem qualquer referência a ditadores, generais e presos políticos. Tratava-se simplesmente de uma tragédia familiar, a história de duas irmãs apaixonadas pelo mesmo homem. No entanto, era inédita em nosso país a forma adotada por Nelson Rodrigues para contar essa história, que poderia ter sido publicada numa manchete dos jornais populares então à voga, como Notícias Populares e Última Hora (paulistas) ou Luta Democrática e A Noite (cariocas) – jornais muito bem descritos na canção de Tom Zé para o álbum Tropicália ou Panis et Circenses: “E tem jornal popular que nunca se espreme porque pode derramar: / é um banco de sangue encadernado, / já vem pronto e tabelado. / É somente requentar e usar / E é made made made, made in Brazil”. A peça se passa em três níveis: a realidade (na voz insensível de médicos e jornalistas), a alucinação e a memória.
Nesta montagem de Helena Ignez, minha surpresa maior veio da interpretação de duas grandes atrizes, mas não Lucélia Santos e Clarissa Abujamra. Refiro-me a Simone Spoladore e Djin Sganzerla – as irmãs protagonistas de Vestido de Noiva. É verdade que, se fosse por conta da idade, nenhum empecilho haveria em imaginar Lucélia interpretando Alaíde: Djin, embora mais jovem, não tem mais 22 anos há tempos. Mas Lucélia quis desde o começo interpretar Madame Clessi e Helena Ignez agiu acertadamente na escolha dos papéis para os demais atores e atrizes. Quanto Clarice Abujamra, a Dona Ligia (mãe de Alaíde e Lúcia), foi sóbria e correta.
Com relação a Nelson Rodrigues, permito-me transcrever as reflexões do crítico literário português Eduardo Lourenço que, comentando a obra de Agustina Bessa-Luiz, autora de Sibila e reacionária declarada, afirmou:
“Pouco importa que uma leitura de sentido imediato ou o comportamento ideológico ostensivo de uma autora como Bessa- Luís assinalem a sua obra como inequivocamente reacionária. Até importa mais do que o que ela pensa. É caso para dizer que não é reacionário quem quer. A autora da Sibila pode por vezes reenviar-nos ao paraíso arcaico da «roca e do fuso», uma tal convicção, ingenuidade ou pensada e profunda provocação, são pouca coisa ao lado da descrição da desordem sentimental, da crueldade das «relações humanas», da visão demoníaca do dinheiro que das suas páginas se levanta desmentindo sem cessar a litania azul da nossa celebérrima e trágica «brandura de costumes». O que Bessa-Luís mostra, importa mais do que ela «pensa»” (Eduardo Lourenço, O Canto do Signo. Existência e Literatura, p. 261 – Apud António dos Santos Queirós - A Contribuição dos Poetas e Prosadores Portugueses para a Génese da Moderna Consciência Ambientalista).
O teatro de Nelson Rodrigues é maior do que as opiniões políticas expressadas pelo dramaturgo carioca ao longo de sua vida. Como disse Eduardo Lourenço, “não é reacionário quem quer”. No mesmo sentido, também não é revolucionário quem quer: Villa-Lobos é lembrado como o grande nome da música erudita brasileira do Século XX, mas não ousou inovar como Gilberto Mendes ou Willy Corrêa de Oliveira. Jorge Amado é conhecido em todo o mundo, mas nunca alcançou o discreto e contido diplomata Guimarães Rosa. E, embora tenhamos que torcer o nariz, é preciso reconhecer que Nelson Rodrigues foi um revolucionário. Vestido de Noiva, o texto dramático, repleto de camadas temporais e diálogos deslocados do eixo central, nos faz mergulhar no mundo carioca dos anos 1950/1960. Mescla tragédia grega com jornalismo. Subverte o formato tradicional com que se vinha desenvolvendo a dramaturgia brasileira até então. O triângulo feminino de atrizes representando a velha prostituta e as duas irmãs, dirigido por Helena Ignez, ícone do cinema brasileiro e grande diretora de teatro, ocupa todo o palco e nos prende na cadeira por rapidíssimos noventa minutos que ocupam os três atos da peça. Uma direção, ressalte-se, impecável, colada ao texto original, do qual apenas substituiu as passagens do plano da realidade (quatro médicos, quatro meninos jornaleiros, quatro repórteres) por projeções de vídeo, sem absolutamente nenhum prejuízo para a dramaturgia.