- Guilherme Purvin
Passado Imperfeito
Atualizado: 27 de set.
- Guilherme José Purvin de Figueiredo -
Decido escrever uma crônica em louvor a Saturno e já começo a desconfiar que cometo uma tautologia. Afinal, toda crônica é, como o nome já indica, uma oração em louvor ao titã que devorava seus próprios filhos.

Houve um tempo em que eu ia dormir e que precisava acordar depois de seis da manhã: tinha que fazer alguma coisa. Como isso hoje é algo raríssimo (meu tempo é dedicado à observação do crescimento de tomateiros), não foi sem estranheza que acordei afobado na manhã desta sexta-feira para a aula de italiano: eram quase oito da manhã e ainda precisava tomar banho, preparar o café e ligar o computador.
Às 8h20 saí do banho e me sequei. Às 8h45 terminei de preparar o suco detox (couve, limão, gengibre, canela e maçã), a crepioca de queijo e tomate e o café. Resultado: cheguei à aula às 9h05, quando o professor e os outros sete alunos já estavam tutti attenti in classe.
Era aula sobre o imperfeto 1 e o jogo era assim: tínhamos que construir frases do tipo "Antigamente eu tatata algo. Hoje, eu tatata". Por exemplo: "Quando ero piccolo, il mio gioco preferito era il calcio balilla. Oggi è il poker". Começamos os exercícios e cada um construiu sua frase: "Prima mi svegliavo alle 5:30 per andare al lavoro; oggi mi sveglio alle 8 perché lavoro a casa".
A aula se transformou então numa sucessão de confissões melancólicas e projeções pessimistas: éramos todos extremamente felizes, hoje somos escravos angustiados. Em dado momento, o professor começou a rir e a dizer que a aula tinha um tom marcantemente leopardiano - isto é, triste como uma poesia do poeta italiano Giacomo Leopardi. Como, porém, evitar comparações no tempo, se a aula é sobre o uso de um passado imperfeito? Então, como não nos lembrarmos de como era a vida há três meses e como ela é agora?
As três horas da aula matinal modificam totalmente o gerenciamento do tempo necessário para observar o crescimento dos tomateiros e limpar a cozinha. Surpreso, pressinto que já termina o dia mais uma vez, sem que nada tenha melhorado no país. Hoje foi dia da visita-surpresa ao STF e da entrevista na qual Regina Duarte sorri com benevolência para a tortura política. Por via das dúvidas, resolvo inspecionar todos os relógios em funcionamento nesta casa, a partir do telefone celular e do computador. Até então, nem desconfiava que havia pelo menos cinco espalhados pelos cômodos - um em meu quarto, dois neste estúdio, outro na sala do piano e um quinto na cozinha...
Escolho o mais vulgar e desinteressante. A marca é Herweg - desconfio que é uma marca popular. Não deve ter custado 50 reais, talvez a metade disso. Imagino que tenha sido adquirido em 2013, para não perder a hora das novas aulas na Faculdade de Letras.
Às 5h30 da madrugada ele começava a tocar - bibip, bibip, bibip, eu me erguia, tomava banho, preparava o café da manhã, me vestia, subia a pé até a Estação Paraíso, entrava num vagão completamente lotado, descia na Estação Consolação, atravessava para o meio da pista, entre o Belas Artes e o Riviera, onde aguardava o ônibus para a Cidade Universitária. Chegava na faculdade às sete e cinquenta - tempo necessário para descobrir, naquele labirinto, em que sala seriam ministradas as aulas.
O bibip bibip bibip começou a me irritar cada vez mais. Nosso casamento ruía e eu precisava de um motivo para livrar-me dele. Decidi render-me à condição de pequeno burguês às vésperas da aposentadoria: podia me dar ao luxo de perder cinquenta minutos num congestionamento, ouvindo Tulipa Ruiz ou Zaz pela Avenida JK ou dentro do buraco com o suspeitíssimo nome "Tribunal de Justiça" - por que motivo Paulo Maluf teria escolhido esse nome, ó Cronos todo poderoso que devora os seus filhos?

Nas primeiras semanas, o roxinho ainda permaneceu sem alarme e sem função alguma ao lado do abajur. Uma madrugada, virei o braço para o lado e ele caiu no chão, as baterias para um lado, e a certeza de que nossa fase estava definitivamente encerrada. Para não ser grosseiro, coloquei-o dentro da gaveta da mesa de cabeceira (fui informado que o nome "criado-mudo" é politicamente incorreto; isso vale outra crôncia) e ali o esqueci.
E agora, no oitavo dia do mês das noivas, volto novamente meus olhos para o que restou deste meu velho caso dos tempos da terceira graduação. O roxinho continua aqui, marcando as horas para ninguém, como aquela transmissão de rádio do seriado Lost, uma voz de mulher ditando números em ordem crescente num espaço inacessível, tão somente destinada a mostrar que o tempo prosseguirá mesmo sem vida humana no planeta. Lontano dagli occhi, lontano dal cuore, esse estúpido relógio barato e sem charme persiste, cumprindo inutilmente sua finalidade, apenas para demonstrar cientificamente o que todos sabemos: vivemos agora o passado imperfeito do que virá e tudo demora em ser tão ruim.
Saúdo este autômato roxo e inútil durante a pandemia do nazismo brasileiro, mas isto tão somente porque crônicas são saturnais e ferozes.
Guilherme Purvin era professor de Direito Ambiental e Procurador do Estado. Hoje é um dos milhões de brasileiros desconhecidos que contam nos ponteiros do relógio o momento em que terá fim a pandemia e o nazifascismo.