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  • Guilherme Purvin

Príncipe e seu passado colonial presente

Atualizado: 25 de abr.

= Guilherme Purvin =

Lembro-me da região do Vale do Ribeira nos anos 1960, com suas palafitas de madeira, estradas de terra e floresta por todos os lados. Ou então do litoral norte paulista muito antes de ser violentado pela RIo-Santos. Príncipe é um pouco assim, mas essas imagens só fazem algum sentido para quem conheceu o Estado de São Paulo naquela época. Então o melhor é mostrar tudo por fotografias tiradas às pressas, dentro da camionete que foi nos buscar no aeroporto para nos trazer à Roça Belo Monte.


Foto: (c) Guilherme Purvin.

Foto: (c) Guilherme Purvin.

Foto: (c) Guilherme Purvin.

Essas imagens, é bom ressaltar, são das casas populares mais bem ajeitadas. Seu estado de conservação pode ser bem pior, a depender da renda da família. As estradas, por sua vez, são precárias, embora transitáveis em alguns casos específicos, como o da que nos leva à roça onde nos hospedamos. Nada, porém, que permita ultrapassar os 30 km/h.


Foto: (c) Guilherme Purvin.

A semelhança com o clima e a flora brasileira é muito grande, transmitindo mesmo a sensação de que estamos numa viagem de volta ao passado. A foto acima, por exemplo, bem poderia ter sido tirada em 1973 na estrada que levava ao sítio de meu pai em Itapecerica da Serra, antes de vir a ser asfaltada. Por outro lado, em nenhum momento sentimos a talumidade sufocante de que tanto se falou a respeito de STP. Para quem conhece Belém do Pará, o clima por aqui pode até parecer seco demais!


Foto: (c) Guilherme Purvin.

 

Sentimos uma diferença entre o comportamento dos moradores de Príncipe em relação aos de São Tomé. Aqui, são mais calados, olham desconfiadamente para os estrangeiros (mesmo para os brasileiros), com um certo ar de medo. Isso faz lembrar a descrição da população local feita por Miguel de Souza Tavares em seu best-seller "Equador", cujo momento culminante se passa justamente aqui em Príncipe, no momento da rebelião numa das roças onde os trabalhadores eram tratados de forma cruel pelos produtores de cacau e café. Estamos, na verdade, hospedados numa das sedes de fazenda (roças). Claro, ainda é muito cedo para tirar qualquer conclusão e bem pode ser que a diferença não está entre a cultura nas duas ilhas, mas na distinção entre população urbana e rural. Embora pequena, a capital é uma cidade de mais de 70 mil habitantes, ou seja, praticamente 1/3 de toda a população do país, ao passo que a população de toda a Ilha de Príncipe junta não chega a oito mil pessoas.


Seja como for, fato é que, nas últimas 24 horas, com exceção de duas mulheres, a venezuelana Verônica e a são-tomense Sandra, a quase totalidade dos homens não é de conversas. Respondem como soldados ao que lhes for perguntado, não deixando margem a qualquer tipo de diálogo. Os motoristas das camionetes passam o tempo ouvindo programas religiosos e não querem conversa. Talvez estejam de saco cheio dos poucos turistas que se aventuram a chegar a este lugar, com o conhecimento histórico acumulado de que tudo o que vem dos brancos é coisa ruim: exploração e violência.


As roças são mais ou menos a mesma coisa que as antigas fazendas de monocultura brasileiras (plantations). Mesmo depois de abolida a escravidão, os portugueses continuaram tratando os trabalhadores são-tomenses de forma cruel, não se esforçando em nada para modificar a forma das relações de trabalho. Esse, aliás, é o tema central do romance "Equador". Em 1975, com a independência de São Tomé e Príncipe, o novo governo estatizou as roças com a finalidade de promover uma grande reforma agrária e acabar com a desigualdade brutal de renda da população. Quinze anos mais tarde, porém, o Banco Mundial e o FMI exigiram mudanças estruturais: as pequenas roças, de até 10 hectares, seriam destinadas aos trabalhadores rurais já estabelecidos. E os latifúndios foram objeto de uma grande licitação internacional. Resultado disso foi a transferência dessas roças erguidas historicamente com o sangue e o suor dos trabalhadores trazidos para as ilhas do continente (Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde principalmente) para exploração por megaempresários europeus (já não mais apenas europeus portugueses). Ou seja, na década de 1990 tivemos um retorno à iniquidade, agora sob uma perspectiva globalizada. Hoje, o Banco Mundial culpa esse atraso ao próprio governo de São Tomé e Príncipe, por não proporcionar aos capitalistas uma infraestrutura confiável, sobretudo de geração de energia elétrica, combustíveis baratos e acesso viário.


Um outro aspecto curioso no país (não somente em Príncipe) é a predominância absoluta de população jovem. Quase não se vê pessoas com mais de 50 anos de idade nas ruas, mas apenas jovens de 20 anos e crianças, além de muitas mães carregando nenês no colo ou na barriga - caso da Sandra, funcionária da Roça Belo Monte, que espera uma menina que irá se chamar Verônica, em homenagem à sua melhor amiga, a venezuelana que gerencia este hotel-roça.


O hotel é uma típica sede de fazenda colonial, com quartos amplos e arejados, em meio a uma floresta densa. Um vaso enfeita o quarto com uma flor muito linda. Tiramos uma foto e perguntamos à Sandra qual era o seu nome. Ela responde: "Ah, essa é a rosa psilana". Procuro no Google esse nome e não encontro nada parecido. Depois de muita pesquisa a respeito das plantas típicas de STP, finalmente deciframos o nome: rosa de porcelana (Elingera elatiora), considerada um dos símbolos do país e admirada por todo turista que a vê pela primeira vez.


Foto: (c) Guilherme Purvin.

O jantar no hotel foi no sistema de buffet, da mesma forma e com a mesma qualidade do Hotel Pestana São Tomé. Era preciso ligar a lanterna do telefone celular para enxergar o que havia dentro dos rechauds. Apanhei uma coisa que pensei ser cogumelos, mas na verdade eram lulas. Tudo vem repleto do tempero típico do país, o micócó, elogiadíssimo por seu poder afrodisíaco, mas com um sabor meio enjoativo. As frutas continuam sendo a salvação da lavoura. Desta vez, provamos uma nova, sape-sape, além de abacate, mamão e ananás.


Foto: (c) Guilherme Purvin.

Assim terminou o dia 7 de janeiro de 2024, segundo dia em STP, primeiro na ilha menor. De madrugada, a energia elétrica foi interrompida meia dúzia de vezes. Na manhã seguinte, começariam nossos passeios por Príncipe.


Príncipe, 7/1/2024



 

Cooperativa ecofeminista em Príncipe


- Guilherme Purvin -

Até 2017, havia 79 Reservas da Biosfera da UNESCO situadas na África. As reservas da biosfera foram criadas para proteger o patrimônio natural e cultural, promover conservação da biodiversidade e promover o uso responsável e sustentável dos recursos naturais. Toda a ilha de Príncipe é considerada uma Reserva da Biosfera.


Foto: (c) Guilherme Purvin.

A Unidade de Gestão da Biosfera desenvolve várias atividades relevantes, tais como formação em ecoturismo para guias locais, promoção de uma gestão de resíduos responsável, apoio a negócios sustentáveis e assistência a cooperativas locais. Diferentemente do que ocorre, por exemplo, com população paulista, que praticamente ignora a existência da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de São Paulo, em Príncipe a população sente muito orgulho por haver recebido esse título da UNESCO. Há um prédio destinado à Unidade de Gestão da Biosfera na principal praça da cidade de Santo António.


Foto: (c) Guilherme Purvin.

Ecofeminismo e reciclagem

O programa da Biosfera criou em Porto Real uma cooperativa de mulheres que converte resíduos orgânicos em composto e transforma garrafas de vidro em lindas contas de vidro colorido para fazer joalharia ou outras peças artesanais. Fomos conhecer essa cooperativa, tendo sido recebidos pela Anabela Pina, uma feminista muito consciente.

Foto: (c) Guilherme Purvin.

Anabela Pina trabalhando na confecção de bijuterias de vidro reciclado.


 

O processo de reciclagem de garrafas de vidro é totalmente artesanal (manual). O vidro é moído num pilão, depois é peneirado e a areia produzida é misturada com pigmentos, colocada em pequenas formas e levada a um forno a 1800 graus. Anabela nos explicou que a cooperativa conta com a participação de quatro mulheres.


Foto: (c) Guilherme Purvin.

Bacia de madeira com a areia de vidro já moído e peneirado.


 

Foto: (c) Guilherme Purvin.

Moldes para a areia de vidro que vão para o forno.


 

Foto: (c) Guilherme Purvin.

Bancada de trabalho, onde podem ser vistas as bacias com areia, os pigmentos, as formas e as peças já produzidas.


 


Foto: (c) Guilherme Purvin.

Não há um só aparelho elétrico para facilitar o trabalho. Até mesmo o polimento é feito manualmente, com limas.


A cooperativa fica em Santo António. De acordo com informação constante nos cartazes do museu da Roça Belo Monte, é possível inscrever-se para um dia de formação e fazer os seus próprios colares de contas de vidro

 

CONHECIMENTOS MEDICINAIS TRADICIONAIS

Outra iniciativa da UNESCO foi a criação de uma cooperativa de medicina tradicional local, a ATTRAP. Queríamos conhecer a ATTRAP, mas o Ezequiel, nosso guia, explicou que a cooperativa está desmobilizada e só se reúne em ocasiões específicas, quando previamente agendada a data. Encontrei neste site algumas informações interessantes sobre o tema.


De acordo com as informações constantes do Museu da Roça Porto Belo, a ATTRAP, cooperativa de terapeutas curandeiros, parteiros e massagistas tradicionais, foi criada com o objetivo de salvaguardar o conhecimento local de plantas medicinais, que está sob ameaça e em risco de desaparecer. Hoje restam muito poucos curandeiros tradicionais, tratando-se na maior parte dos casos de pessoas já muito idosas. Além disso, algumas espécies de plantas têm-se tornado cada vez mais raras e o seu uso e exploração precisa de ser gerida de forma sustentável.


Ezequiel explicou-nos que, hoje, já não é permitido realizar o parto de crianças em casa, com parteiros tradicionais. Toda mulher grávida deve ser levada à maternidade para dar à luz seu nenê. Aliás, o que mais se vê na ilha são crianças e mulheres grávidas:


Foto: (c) Guilherme Purvin


Foto: (c) Guilherme Purvin

Príncipe, 9/1/2024

Guilherme Purvin

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