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  • Guilherme Purvin

O Tempo na MPB

Atualizado: 11 de set. de 2023

- Guilherme Purvin -




Houve um tempo em que o Rio de Janeiro era considerado a cidade mais linda e encantadora do Brasil. Não cheguei a conhecer esse tempo, mas seus ecos vêm das canções de Tom Jobim, Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. Hoje, o que resta daquela era está na memória de alguns cariocas septuagenários e saudosistas. O tempo atual é de violência, de infâncias destroçadas por um Estado cruel que fomenta milícias e templos monetários. Tempo de devorar crianças.


Rabbath, localizada cerca de 32 km a leste do Jordão, era a principal cidade do povo amonita. Ali poderia ser encontrada uma cama de 4m de comprimento por 1m80 de largura. As proporções dessa cama sempre chamaram muita atenção e, ao que parece, teria pertencido a Og ("gigantesco", em hebraico: עוג, cogˈʕoːɡ; em árabe: عوج, cogh[ʕoːɣ]). Og, rei dos amonitas, foi o último sobrevivente dos refains, raça de gigantes hoje extinta, e teria sido morto por Moisés.


Começo esta crônica com esta referência ao povo amonita, com a finalidade de chamar a atenção a um de seus deuses, Moloch. O Deuteronômio declarou que qualquer israelita ou estrangeiro residente em Israel que entregasse um dos seus filhos a Moloch, teria que ser executado por apedrejamento. A expressão "entregar o filho a Moloch" significaria exatamente sacrificar uma criança, atirando-a numa fornalha instalada no corpo de uma grande estátua com a representação daquele deus com cabeça de boi. Moloch seria um deus devorador de seus próprios filhos.


O mito de Moloch é semelhante ao de Saturno, titã grego que devorava todos os seus filhos, temeroso de uma profecia segundo a qual ele seria morto por um de seus descendentes. Semelhante é também a história de Cronos.


A origem etimológica da palavra "crônica" é exatamente esta: Cronos. Cronos, por sua vez, nos remete ao tempo - cronologia. O tempo é esse deus que permite o surgimento da vida, que proporciona nosso crescimento e amadurecimento e, ao final, nos devora implacavelmente. E isto nos leva à explicação do significado que se pretende dar a um texto qualificado de "crônica": trata-se de algo destinado a perecer rapidamente. Diferentemente de quando planejo escrever um conto, ao redigir uma crônica, minha intenção é apenas de expressar alguma opinião a respeito de algo que sei ser passageiro. Um fato noticiado nos jornais e que supostamente não será lembrado dentro de dois anos, talvez nem mesmo dentro de dois meses.


Desde 2013, uma sucessão aparentemente ininterrupta de fatos e factóides políticos e jurídicos passou a ocupar as manchetes de jornais, as redes sociais e os noticiários de TV. Cada notícia, pelo seu caráter bombástico, podia ensejar uma nova crônica. Crônica sim, pois tudo aquilo parecia passageiro e inverossímil. Só depois de passados pelo menos três anos é que passamos a perceber que aquela avalanche estava na verdade modificando drasticamente a concepção de democracia desenhada na Constituição de 1988. Passados entre seis e nove anos dessa enxurrada, seria muito difícil conseguir relembrar o que teria motivado a escrever sobre fatos que, à época, pareciam não passar de aberrações.


Muitos livros foram escritos em todo o mundo a respeito das chamadas "primaveras", movimentos supostamente espontâneos da população contra modelos políticos arcaicos. Guerras híbridas, "occupy", fake news, verdades alternativas e, por fim, ressurgimento da extrema-direita como movimento de massa - neonazismo que já se prenunciava em filmes como "Ele está de volta" (Er ist wieder da).


Cronos devora seus filhos, às vezes lentamente, deixando que eles cheguem à decrepitude senil; outras vezes bem depressa, ao estilo Moloch, engolindo-os ainda bebês.


Trago aqui duas canções de MPB dedicadas a esse deus atroz e que falam de ícones da geografia do Rio de Janeiro.


A primeira delas é "Tempo Rei", de Gilberto Gil, na qual o compositor bahiano destaca o caráter efêmero das coisas aparentemente mais sólidas, como os dois grandes símbolos da geografia carioca:


"Não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo, transformando tempo e espaço, navegando todos os sentidos... Pães de Açúcar, Corcovados fustigados pela chuva e pelo eterno vento... Água mole, pedra dura, tanto bate que não restará nem pensamento... Tempo Rei! Oh Tempo Rei! Oh Tempo Rei! Transformai as velhas formas do viver Ensinai-me oh Pai, o que eu, ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei!... Pensamento! Mesmo o fundamento singular do ser humano De um momento para o outro poderá não mais fundar nem gregos, nem baianos... Mães zelosas, pais corujas, vejam como as águas de repente ficam sujas... Não se iludam, não me iludo, tudo agora mesmo pode estar por um segundo..."


Tudo o que é sólido desmancha no ar. A democracia que parecia consolidada em 2013, como ficaríamos sabendo, estava por apenas um segundo. Mas não só a democracia. A civilização foi de tal modo agredida, vilipendiada, sobretudo em sua perspectiva socioambiental, que nada nos assegura que a própria vida no planeta possa estar agora mesmo por um segundo.


Outra canção que trata da relação entre o tempo e a paisagem carioca é "Morro Dois Irmãos", de Chico Buarque:

"Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada E a teus pés vão-se encostar os instrumentos Aprendi a respeitar tua prumada E desconfiar do teu silêncio.

Penso ouvir a pulsação atravessada Do que foi e o que será noutra existência É assim como se a rocha dilatada Fosse uma concentração de tempos,

É assim como se o ritmo do nada Fosse, sim, todos os ritmos por dentro Ou, então, como uma música parada Sobre uma montanha em movimento."


Aqui, Chico Buarque destaca que a conformação do cenário carioca é, ela mesma, resultado da ação do tempo. A canção difere da de Gilberto Gil apenas no que diz respeito à perspectiva: Gil destaca o que virá, Chico expõe como veio. Assim também é a sociedade brasileira, uma concentração dos tempos de colonização, de escravização e genocídio, de destruição das florestas.


Há dois anos e meio, em 8 de maio de 2020, escrevi uma crônica chamada "Passado Imperfeito", tendo como tema o próprio tempo. Nela, eu falava sobre o ritmo do tempo dedicado à observação do crescimento de tomateiros e emendava tudo com aulas de Italiano. Na ocasião, estudava o "Imperfeto I": "Prima mi svegliavo alle 5:30 per andare al lavoro; oggi mi sveglio alle 8 perché lavoro a casa". E, na crônica, eu dizia que aquela aula subitamente havia se transformado numa sucessão de confissões melancólicas e projeções pessimistas: éramos todos extremamente felizes, hoje somos escravos angustiados. Em dado momento, o professor começou a rir e a dizer que a aula tinha um tom marcantemente leopardiano - isto é, triste como uma poesia do poeta italiano Giacomo Leopardi. Como, porém, evitar comparações no tempo, se a aula era sobre o uso de um passado imperfeito? Então, como não nos lembrarmos de como era a vida há três meses e como ela era agora, durante aquela aula?


Os fatos narrados naquela crônica ocorreram, repito, há apenas dois anos e meio. Em dado momento, eu passei a falar sobre certa visita-surpresa ao STF e sobre uma entrevista com Regina Duarte, na qual a atriz sorria com benevolência para a tortura política. Cronos haverá de devorar as figuras hediondas mencionadas naquela crônica esquecida em que, melancolicamente, cantarolava Caetano e Gil: tudo demorando em ser tão ruim. Ao final, eu me apresentava como alguém que um dia foi professor de Direito Ambiental e Procurador do Estado e que, agora, era um dos milhões de brasileiros desconhecidos que contavam nos ponteiros do relógio o momento em que teriam fim a pandemia e o nazifascismo.


A pandemia, ao que parece, teve fim. O nazifascismo, por sua vez, foi derrotado nas urnas, prenunciando-se um Novo Tempo, na voz de Ivan Lins:


No novo tempo, apesar dos castigos Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos

Pra nos socorrer. No novo tempo, apesar dos perigos Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta

Pra sobreviver.

No novo tempo, apesar dos castigos De toda fadiga, de toda injustiça, estamos na briga

Pra nos socorrer. No novo tempo, apesar dos perigos De todos pecados, de todos enganos, estamos marcados

Pra sobreviver. No novo tempo, apesar dos castigos Estamos em cena, estamos na rua quebrando as algemas

Pra nos socorrer. No novo tempo, apesar dos perigos A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça

Pra sobreviver.

Pra que nossa esperança Seja mais que vingança Seja sempre um caminho Que se deixa de herança.

 

Guilherme Purvin é escritor. Autor dos livros de contos "Laboratório de Manipulação" (2017), "Sambas & Polonaises" (2019) e "Virando o Ipiranga" (2021).



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