- Guilherme Purvin
Carta de um judeu novo a seu amigo caboverdiano
- Guilherme José Purvin de Figueiredo -

Querido amigo,
Eu disse a você que talvez escrevesse uma crônica dedicada às lembranças de nossos tempos na faculdade de Jornalismo, mas que não dava nenhuma certeza. Tinha acabado de ver "O Gabinete do Dr. Caligari" num dos cinco pacotes de streaming que assinei desde o dia 13 de março deste ano. Desliguei a TV e vim para o computador, onde permaneci com os olhos colados na tela, procurando romper o bloqueio criativo que me alcançou desde então.
Dia desses, minha irmã Irene me enviou uma charge do New Yorker. Era um trocadilho visual com a expressão "writer's block". Não entendi a piada. Pensava em "block" como bloco ou quarteirão, nunca como bloqueio. Você deve saber, já morei na Mooca, na Lapa, no Ipiranga, mas nunca no Brooklyn Paulista ou na Parada Inglesa, redutos anglófilos da boemia progressista que jamais soube o que é dar uma travada geral. A piada não fazia nenhum sentido em nosso idioma e, pior, não me ajudava a ativar o lado literário de meu cérebro – no máximo fazia cosquinhas na banda linguística.
Voltei ao streaming, em busca de um remédio anti-esterilidade, quando me veio de presente o 8 ½ do Fellini. Óbvio, transformaria a incapacidade de escrever em tema desta epístola!
Já lá se vão quase cinco meses do dia em que decidi escrever uma carta, uma crônica ou um conto por dia, já que não crio coragem para rabiscar as paredes desta cela para cada dia do cumprimento de sua pena. Não cogitava da possibilidade de, por exemplo, todas as ideias se esvaírem como perfume que se dissipa a uma lufada de vento. Ou talvez a questão não fosse nem a falta de ideias — embora seja forçado a admitir que sempre tive preguiça de anotar aqueles lampejos que surgem durante as caminhadas pelo apartamento ou as visitas aos tomateiros. É que, você sabe bem, meu amigo, a ideia em si não vale nada se não conseguir desenvolvê-la num texto que interesse minimamente ao menos uma só pessoa. Uma pessoa, entende? Transcrevo aqui esta passagem de "O Túnel", de Ernesto Sábato, que lia hoje à tarde e que, mutatis mutandi, tem relação com esta nossa conversa:
"Eu poderia calar os motivos que me levaram a escrever estas páginas de confissão; mas, como não estou interessado em passar por excêntrico, direi a verdade, que de resto é bastante simples: pensei que elas poderiam ser lidas por muita gente, já que agora sou famoso; e, embora não tenha ilusões acerca da humanidade em geral, nem dos leitores destas páginas em particular, anima-me a tênue esperança de que alguma pessoa chegue a me entender, MESMO QUE SEJA UMA ÚNICA PESSOA".
Você é escritor — ou era... ou foi naqueles nossos breves anos de Jornalismo, não sei mais, porque faz quase quarenta anos que não nos vemos e justamente em março, quando agendávamos um almoço, veio a pandemia e você voltou para essa absurda cidade de Praia. Bom, uma coisa é certa, sei que você editava “A Prensa”, uma versão bioquímica do “Ponto Marginal” e também sei que escrevemos a quatro mãos alguma coisa chamada "La Goyaba Moralista". É o que basta para justificar o que estou querendo lhe dizer: boa ideia não é mais do que um detalhe. Histórias interessantes surgem com a mesma regularidade com que vislumbramos estrelas cadentes na poluição luminosa das noites paulistanas. Talvez aí em Cabo Verde a frequência seja maior e você precise substituir a imagem.
Enfim, achei que o momento presente, madrugada do dia 5 de agosto de 2020, calhava à fiveleta escrever esta missiva inútil, nem que fosse para voltar a dar cumprimento àquela minha promessa dos primeiros dias de confinamento. Terminei de ver o filme (o “Gabinete”, não o “8 ½”) e aqui estou, perguntando a você se isto é um conto, uma crônica ou uma carta.
Talvez não seja nenhum dos três, mas apenas uma consulta médica. A minha ideia, Maurício, é começar este texto com esta história: o personagem chama-se Friedrich Feher e está sozinho em seu apartamento. É madrugada de uma terça-feira fria e ele tem insônia. Levanta-se da cama e vai para a sala observar as lombadas dos livros nas estantes. Retira um deles que não folheia há muitos anos. O livro o faz lembrar dos tempos em que ficava com seus amigos e amigas de faculdade, as garotas dizendo que adoravam Beto Guedes e Lô Borges e queriam fundar o fã clube feminino do Clube da Esquina na faculdade. Lê então em voz alta este trecho do livro:
"Aqui em Holstenwall, não é sempre que encontro pessoas interessantes com quem conversar. Janel Wislawa tem sido muito fria comigo. Declarei meu amor a ela, fiz tudo para conquistá-la, recitei-lhe Schiller e Byron, toquei uma ária de Bach em meu violino para tornar seus passeios ao por do sol mais melodiosos, mas nada rompe esse distanciamento. Janel diz que pessoas da nobreza austro-húngara, como ela, não são donas de seus próprios corações, que eu devo sepultar qualquer pretensão a seu respeito. Mas não desistirei. Ela é minha noiva e ela é linda. Não deixarei um só dia de declarar minha paixão por ela. Vejo-a passando pelos jardins e parques deste sanatório, alheia à minha presença, e a cada instante aumenta a minha certeza de que não fui o único homem que se apaixonou por ela. Também você, Maurício, meu velho amigo, a quis para si — e foi apenas a nossa infinita amizade que impediu que entrássemos em conflito por conta desta rivalidade sentimental. Mas você exilou-se nessa distante ilha do Atlântico e agora sou o único... Bah! Como se isso fosse algum consolo! Janel Wislawa continua passeando pelas ruas, indiferente e bela enquanto este seu guardião recolhe a poesia que ela entorna no chão".
Neste ponto, Friedrich Feher interrompe a leitura do livro e eu já não sei mais para onde prosseguir com esta história que nada mais é do que uma reprodução do Gabinete do Dr. Calligari.
Conheço Hollstenwall, a cidade desse personagem. Morei naquele vilarejo durante mais de um ano, de março de 1980 a novembro de 1981. Daquela época, carrego vivas na memória as formas das portas e janelas. Mas o que mais me impactou foi o fato de ter conhecido o mandante de seu exílio para Cabo Verde. Era um homem já era bastante conhecido na Itália, onde cometeu uma série de deportações arbitrárias. Em território russo, comandou pogroms que resultaram na morte de milhares de Purviņš, meus antepassados judeus da Letônia.
Sabe qual foi a nossa sorte? É que renegamos nosso vínculo com Abraão. Sim, como você, também sou um cristão novo. Vê só a infinidade de elos que podemos criar? A Prensa & Ponto Marginal, La Goyaba Moralista & 8 ½, Hollstenwall & Praia, Butantã & Cambuci. A tela aceita tudo. Amanhã, se o bloqueio persistir, eu enviarei um ensaio que escrevi sobre Corsino Fortes. Ao menos será mais suave do que a descrição das atrocidades perpetradas pelo diretor do sanatório enquanto dura este sono asquenaze por quase cinco meses.
Forte abraço do
Lars Purviņš.
São Paulo, 5 de agosto de 2020
Guilherme Purvin é escritor e padeiro.